Comércio Tradicional de Viseu já não é o que era

O centro do comércio tradicional de Viseu fica localizado na famosa Rua Direita, durante séculos o principal motor do comércio da cidade. São quase dois quilómetros de uma rua onde hoje se multiplicam as placas “vende-se” ou “arrenda-se”, consequências de uma crise que teima em permanecer. Mas ainda há quem resista, quem tenha vencido sucessivas crises e se posicione face à mudança de paradigma do comércio.
A sapataria Custódio Domingos é um dos espaços comerciais mais antigos da Rua Direita. Fundada em 1923, conta já com 94 anos de existência sempre no mesmo espaço. Paulo Domingos, atualmente responsável pela sapataria, é a terceira geração do negócio. Desde 1985 a trabalhar na sapataria que já passou pelo avô e pelo pai, viu o panorama do comércio de rua mudar completamente.


O empresário culpa as grandes superfícies comerciais: “Se olharmos para o distrito e contabilizarmos a abertura de superfícies médias e grandes, o número é enorme. Alguém tem que legislar isto, porque não há controlo. É um problema nacional, mas em Viseu é pior porque temos a maior densidade comercial do país e os habitantes não são assim tantos”.
Sobre o negócio, Paulo Domingos afirma que “dá para ir vivendo, mas não dá para ganhar dinheiro. Dá para manter à custa de várias fases melhores, como o verão, e das épocas festivas, que trazem mais alguns clientes, mas no dia-a-dia não. Há muita gente a vender e há pouca gente a comprar, não chega para todos”, lamenta Paulo Domingos acrescentando: “já me passou pela cabeça fechar a porta mas não é assim tão fácil nem linear. Para o lojista, a decisão de manter a porta aberta da Sapataria Custódio Domingos assenta em fatores como “a tradição, não ter outros objetivos de vida imediatos e sobretudo, tentar dar a volta, resolver o problema da crise. Já passei por várias crises, mas esta é a pior”, assume.

As vantagens de comprar no comércio tradicional
A trabalhar neste ramo desde 1985, Paulo Domingos reconhece que ainda há o cliente tradicional e fiel “que vem comprar quer chova, quer faça sol”. Para este comerciante, ainda há coisas que as grandes superfícies comerciais não têm para oferecer, como “o atendimento personalizado, o conhecimento do cliente tratando-o pelo nome e o serviço para que o cliente tenha a menor preocupação possível a procurar aquilo que quer”.

Histórias de uma rua
Percorrendo a Rua Direita, em Viseu, é possível encontrar muitas histórias, até de pessoas que já tentaram a sorte de diferentes maneiras, inclusive mudando o ramo de negócio. João Marques Alves é atualmente dono do pronto-a-vestir “O gaiato”, que comercializa roupa para criança, mas esta é já uma segunda tentativa de negócio no mesmo sítio. “O gaiato” está aberto há 20 anos no mesmo sítio, mas de lá para cá, foram grandes as mudanças no comércio tradicional. “Mudou tudo para pior”, começa por atirar João Alves. E prossegue: “O comércio tradicional antigamente tinha muito mais movimento, a rua estava sempre cheia de gente e neste momento, tudo parou”, queixa-se o negociante.
Para João Alves os culpados são os mesmos. “As grandes áreas comerciais desviaram as pessoas”, diz, indo mais longe e apontando o dedo a quem deixou que isso acontecesse. “Os políticos nunca defenderam o comércio tradicional, caso contrário não tinham aprovado as grandes áreas comerciais como aprovaram. Viseu é neste momento a cidade que mais área comercial tem por habitante. Acho que havia de haver um travão”, afirma o empresário. “Acha que um Palácio do Gelo e um Fórum faz sentido em Viseu?”, questiona o comerciante, que faz negócio na Rua Direita há 40 anos, para responder logo de seguida: “Acho que não faz!”.
João Alves, à espera da reforma, garante que mantém as portas abertas com algum esforço e que a curto prazo será a esposa que ficará mais alguns anos a trabalhar no pronto-a-vestir, mas não tem esperança quanto à longevidade do negócio. “A minha esposa vai ficar aqui até ao ponto de atingir a reforma e depois é fechar. Não tenho esperança que isto melhore muito”, conclui o comerciante têxtil.

Nem o Natal serve para salvar o ano
A época natalícia é, por excelência, um tempo de apelo ao consumismo a que grande parte dos portugueses acabam por ceder. Para o comércio tradicional costumava ser uma época em que as vendas alavancavam os negócios, mas há muito que as vendas no Natal deixaram de ser o que eram e apesar de alguns estudos mostrarem uma inversão da tendência, em Viseu não se verificam melhorias como confirma João Alves: “Dezembro foi um mês pior que os outros. Há meses de verão que são melhores que dezembro. Não houve movimento quase nenhum, esteve parado. Foi um Natal para esquecer”.

Associação Comercial do Distrito de Viseu confirma vendas baixas na época natalícia
Gualter Mirandez, presidente da Associação Comercial do Distrito de Viseu (ACDV) confirmou o relato dos comerciantes sobre a época natalícia. “O mês de dezembro era um mês em que nós, os comerciantes, chamávamos o “mês armazém”. Quer isto dizer que se faziam mais vendas nesta altura para, eventualmente, nos meses a seguir, estarmos um bocadinho mais no defeso. De há uns anos a esta parte isso não se tem verificado. Naturalmente que se registam um pouco mais de vendas, mas nem de perto nem de longe é o chamado “mês armazém”. Segundo o dirigente, a recolha de opiniões junto dos comerciantes permite-lhe concluir que não se verificou o aumento das percentagens de vendas que todos gostariam.
Embora se verifique esta situação no comércio tradicional, segundo números divulgados pela SIBS, rede gestora dos multibancos, os portugueses gastaram mais este Natal do que no ano anterior. Entre o dia 1 e 25 de dezembro, em levantamentos e pagamentos através da rede multibanco, os portugueses gastaram €5,674 mim milhões, o que corresponde a um crescimento de 7,3 % face a igual período de 2015.

Contra a corrente
A situação a que chegou o comércio tradicional deixou a maior parte dos comerciantes a tentar sobreviver, mas com poucas armas para combater as grandes superfícies. Outros acabaram mesmo por fechar portas. Como em tudo, há sempre quem saiba dar a volta por cima e remar contra a corrente. É o caso do pronto-a-vestir Tavares, ou melhor, das lojas de roupa Tavares. A primeira Loja Tavares foi fundada em 1954, há 62 anos, em Viseu. Desde então, a empresa soube expandir-se, contando já com quatro lojas, um site de vendas e 18 colaboradores a trabalhar nas várias lojas e na plataforma online.
Paulo Tavares é a 3.ª geração do negócio de família, está há 25 anos no ramo e atualmente é o único responsável pela empresa Tavares. Quando questionado sobre as principais diferenças face aos primeiros tempos em que trabalhou no comércio de rua, Paulo Tavares é peremptório: “as diferenças são enormes: em termos do comportamento do cliente, das próprias lojas quer na sua apresentação quer nos seus produtos e depois toda a dinâmica das cidades que hoje também são completamente diferentes do que há 25 anos atrás”.


Apesar do crescimento da marca, a Tavares também sentiu na pele os efeitos dos novos tempos e só consegue manter o número de funcionários fruto do aumento do número de lojas, admite o empresário: “Como temos mais lojas do que tínhamos há alguns anos, obviamente que o número de vendedores é maior, mas há alguns serviços que deixámos de ter, como o departamento de atelier de costura onde tínhamos três pessoas e hoje não temos nenhuma. O departamento de contabilidade também ocupava três pessoas e hoje só ocupa uma. No geral, o número de pessoas que trabalham connosco acaba por ser menor, mas o número de vendedores é bastante superior”, afirma.
“A situação que atravessamos não é muito fácil, porque o comércio não atravessa momentos exuberantes, mas isso é um mal de que todos os setores carecem. Estamos num momento difícil, mas estamos a conseguir ultrapassar, através de estratégias múltiplas e diversas”, como por exemplo a venda online.
Sobre o estado do comércio em geral, Paulo Tavares diz que não gosta de se queixar. “Eu sou mais pragmático e percebo o mundo atual. Houve algumas transformações do comércio, que tiveram muito a ver com a abertura dos centros comerciais. O mundo moderno tem que ter centros comerciais, nós não somos contra os centros comerciais, embora tenhamos algumas críticas a soluções que se encontraram no âmbito dos centros comerciais, mas elas estão feitas e têm de ser contornadas. Em termos de aposta política, houve um mal porque infelizmente as cidades portuguesas de norte a sul foram varridas da sua principal característica que é a vitalidade e a dinâmica dos centros. Por exemplo, os turistas quando vão às cidades não vão aos centros comerciais, o que eles querem é a vitalidade das cidades e isso está nos centros. Infelizmente, houve alguns erros estratégicos, eu penso que Viseu não foi das piores cidades a sofrer essas politicas mal conduzidas, mas hoje em dia começa-se a olhar de maneira diferente para o centro das cidades”, considera Paulo Tavares.
O empresário acredita ainda que vai acontecer uma nova viragem para o comércio tradicional em Viseu, tal como nas restantes cidades do país, dando o exemplo dos centros das cidades de Lisboa e Porto onde “há meia dúzia de anos se tinha medo de andar à noite e hoje em dia andam lá milhares de pessoas”.
Na mesma linha de pensamento, o presidente da Associação Comercial do Distrito de Viseu, que agrega os comerciantes do distrito, afirma que “o comércio continua numa fase bastante expectante, porque é um dado adquirido que, neste momento, a maioria das famílias ainda não consegue ter proveitos suficientes para fazer algumas compras fora do estritamente necessário. Hoje, as famílias têm um orçamento e esse orçamento está praticamente diluído nos seus compromissos mensais. Sendo assim, resta pouco dinheiro para a compra da camisola, a compra do têxtil, a compra dos sapatos. Tudo o que não é prioritário, fica para segundo plano”, diz Gualter Mirandez.
O dirigente admite a expectativa que tem para os próximos anos, esperando que haja uma retoma no orçamento das famílias, para poderem fazer compras no comércio de proximidade. “O comerciante de rua está um pouco melhor do que estava há alguns anos atrás, porque até há relativamente pouco tempo, as ruas e os centros das cidades estavam desprovidas de gente. Não há empresário nenhum que consiga sobreviver em zonas onde não passam pessoas. A maior parte das cidades esqueceram bastante os seus centros históricos, mas creio que hoje a aposta dos municípios é um pouco diferente, começa a haver uma grande preocupação (e nisso Viseu também está incluído) da parte dos municípios para a recuperação dos centros da cidades. Se a oferta melhorar em todos os sentidos, naturalmente que os comerciantes vão poder usufruir de mais pessoas a visitar o centro das cidades”, realça o comerciante.
“Não creio que seja a breve trecho, mas acredito sinceramente que o comércio de proximidade vai ter novamente oportunidade e vai voltar (não digo que seja aos dias que já viveu) mas vai voltar a ter expetativa de criar melhores dias”, termina, confiante, Gualter Mirandez.

Centros a perder expressão
A expetativa de Gualter Mirandez parece ter razão de ser: segundo um estudo IPAM – The Marketing School relacionado com o Natal passado, os centros comerciais estão a perder expressão e há cada vez mais consumidores a optar pelo comércio de rua e pelas compras online. De acordo com o mesmo estudo, a opção das compras no shopping e no comércio tradicional convenceu 31,4 %, enquanto 9% acabou por fazer as compras da época natalícia online.
De acordo com este estudo, em 2011, 47% dos consumidores disse que faria as compras exclusivamente em centros comerciais; este ano, apenas 29,1% deu essa resposta, o que é revelador deste novo consumidor que faz as compras no comércio tradicional e que já fazia pesquisa online mas, agora, efetua de facto compras”, aponta Mafalda Ferreira, citada pelo DN, docente do IPAM e coordenadora do estudo realizado há oito anos consecutivos durante os primeiros onze dias de dezembro.

Texto e fotos: João Pereira, Luís Moita e o Miguel Campos

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