Uma janela cinematográfica que “dá” para Viseu

“Os filmes não oferecem respostas claras, provocam questões, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência de debate e cidadania”, afirma Rodrigo Francisco, presidente da direção do Cine Clube de Viseu – CCV que destaca antes o papel transformador do cinema como meio de abertura de perspetivas, fronteiras e promoção de debate.

Reportagem de João Micaela

Situado no coração da cidade, o Cine Clube de Viseu é mais do que uma simples sala de projeção. É um espaço que promove a cultura cinematográfica através de exibições regulares de filmes nacionais e internacionais, festivais temáticos e debates interativos. Os organizadores do CCV procuram proporcionar uma experiência completa, onde o público não apenas assiste aos filmes, mas também participa de discussões e reflexões.

Instalações do CCV na Rua Escura em Viseu

Estela Menin, ex-estudante de 22 anos conheceu o CCV nas sessões de cinema ao ar livre no verão de 2021. Conta que ainda fez parte da equipa, embora por um tempo muito breve, mas destaca que o CCV lhe “relembra o apreço pela produção cinematográfica”. A jovem mantém ainda uma ligação ao clube e congratula a instituição por “continuar a existir e a renovar após tantos anos de atuação”.

O Cine Club não é apenas um espaço para os cinéfilos mais experientes e a prova disso são as atividades direcionadas para crianças, incluindo oficinas de brinquedos óticos e cinema de animação nas escolas. “É o encontro de públicos de várias idades em volta de um motivo”, refere Rodrigo Francisco, que prossegue dizendo que “o mote é sempre o mesmo, é o cinema. É o estudo do cinema, é o estudo da história do cinema e é o estudo de figuras.”

Objeto de demonstração do surgimento do cinema. Animação das imagens

Rodrigo Francisco afirma que “com tanta oferta e com tantas possibilidades, até em casa, o CCV assume um papel totalmente diferente. Traz a cartaz se calhar filmes sem época. Ou seja, os filmes que o Cine Clube coloca em cartaz não têm data. É indiferente projetarmos um filme com 60 anos ou um filme com estreia no próprio dia. Portanto, o critério não é a novidade, o único que preside às salas comerciais, mas sim o que o público solicita ao Cine Clube e que no caso é uma coisa diferente”.

O presidente acrescenta a este respeito que é “não deixar que os filmes fiquem esquecidos. Ou seja, filmes que às vezes passaram despercebidos, tenham 4 anos ou 40, e surge uma oportunidade para ter esse filme num contexto diferente, por exemplo, com debate ou com presença de convidados, em que as pessoas colocam questões ao realizador ou a um crítico de cinema, fazemo-lo. São, portanto, papeis diferentes, complementares”.

Uma das características marcantes deste clube é também a sua programação diversificada. Desde clássicos do cinema até produções independentes e filmes de diferentes partes do mundo, o CCV oferece uma variedade de escolhas que atendem a todos os gostos.

“Incentivo e valorização do cinema”

“Entendo que muitas vezes os filmes não são a primeira opção do público geral, mas acho que é justamente isso que torna o Cineclube tão especial”, sublinha Estela Menin. Admite ainda que há um grande trabalho em aproximar a cidade à cultura do cinema e audiovisual, não apenas através das sessões de cinema semanais a preços acessíveis, mas também por diversos projetos de “incentivo e valorização do cinema”.

Ao longo do ano são organizados festivais temáticos, destacando diretores específicos, movimentos cinematográficos ou géneros alternativos. Esses eventos proporcionam uma imersão mais profunda na arte cinematográfica, permitindo que o público explore diferentes perspetivas e estilos.

Os cartazes permanecem guardados mesmo depois da estreia do filme, como se tratasse de obras de arte

De acordo com a direção do CCV, os eventos são realizados para promover debates moderados por especialistas, cineastas locais ou convidados especiais. As discussões proporcionam uma oportunidade para os espectadores expressarem as suas opiniões, fazerem perguntas aos profissionais do setor e aprofundarem a sua compreensão sobre os aspetos artísticos e técnicos dos filmes.

Ainda sobre este tema, Estela Menin, uma espectadora assídua das sessões promovidas pelo Cine Clube de Viseu, sugere que poderiam ser “promovidas mais sessões de discussão também sobre os filmes apresentados à quinta-feira”, acredita que “faria toda a diferença e incentivaria mais público a participar.”

O CCV também desempenha um papel importante na construção de uma comunidade de amantes do cinema em Viseu. As sessões são frequentemente seguidas de eventos sociais, onde os participantes podem partilhar as suas experiências, conhecer outros cinéfilos e criar laços em torno da paixão pela sétima arte.

Natureza militante e cultural

Voltamos então à origem que torna todo este projeto uma realidade, mas para isso é necessário recuar até meados do século XIX em pleno regime autoritário em Portugal. É aqui que o atual membro da direção, Rodrigo Francisco enaltece a coragem dos fundadores, cujas motivações estavam intrinsecamente ligadas à militância e à busca por uma expressão cultural fora dos limites impostos pelo Estado Novo.

“Porque uma coisa é iniciar uma associação em 2024, com todos os procedimentos devidamente delineados, coisa diferente era fazê-lo em 1955 e, portanto, tinha mesmo que existir uma enorme convicção de todos os envolvidos”, ressalva Rodrigo Francisco.

Duas grandes motivações impulsionaram o Cine Club de Viseu desde o início. A primeira, de natureza militante, visava utilizar o cinema como ferramenta para questionar o regime e alertar para questões políticas. A segunda, cultural, tinha como objetivo suprir a falta de diversidade cinematográfica na cidade de Viseu, oferecendo ao público uma alternativa às limitações do circuito autorizado.

Rodrigo Francisco destaca a importância da convicção e da enorme dedicação das pessoas envolvidas na criação e manutenção deste clube, tanto mais que a escassez de filmes no circuito autorizado levou o Cine Club a procurar canais alternativos, como embaixadas e federações internacionais de cineclubes. O desafio era organizar sessões não anunciadas, muitas vezes clandestinas, em locais improváveis.

O financiamento para este empreendimento cultural, contrastando com o modelo atual de dependência direta do apoio do público, começou pelo que agora se define como “crowdfunding”. Panfletos abertos a toda a cidade que tinham como intuito angariar pelo menos 350 sócios de entre toda a população por forma a garantir o funcionamento do clube, A prova de que existia “fome de culturalevou a que mais de 350 pessoas respondessem afirmativamente ao desafio.

Ao discutir a presença de elitismo na escolha de filmes, Rodrigo Francisco enfatiza que a fundação do clube, baseada em filiações e crowdfunding, afasta a ideia de elitismo. O propósito era proporcionar experiências cinematográficas além do circuito comercial, permitindo que a comunidade participasse ativamente na criação e manutenção do clube

Rodrigo Francisco aborda a mudança na natureza da militância, destacando que, atualmente, assistir a filmes numa sala escura pode ser uma forma de militância cultural. A experiência coletiva continua a ser um valor central, o que explica o sucesso de sessões de filmes que já circularam online.

Dificilmente se foge ao tema do financiamento e aqui o diretor destaca a necessidade de uma autonomia crescente, necessária para manter a consistência das atividades do CCV e reforçar o papel do cinema como espaço de convívio, debate e encontro cívico.

Atualmente o CCV conta com cerca de 350 sócios e uma programação variada, que passa por sessões de cinema todas as quintas-feiras, o Vistacurta, que se define como uma proposta crítica de encontros à volta do cinema e da região, Cinema na Cidade que decorre em datas a definir durante o mês de julho e que consiste em usar as fachadas da cidade como tela de cinema e outras participações, o cinema nas escolas, uma proposta especialmente estruturada para o público infantil.

Os desafios atuais incluem a gestão da falta de recursos e a manutenção da capacidade de trabalho face às condições desafiadoras para a cultura em Portugal. O desejo para o futuro é simples, diz-nos Rodrigo Francisco, “é continuar a ser um espaço onde, desde 1955, foi possível dar à comunidade um espaço de cidadania para se encontrar, para debater, para trocar ideias à volta de uma forma de arte que pode ser o cinema.”

Sessão no âmbito da iniciativa Cinema na Cidade

Num mundo onde o entretenimento muitas vezes é efémero, o Cine Clube de Viseu quer proporcionar uma experiência cinematográfica enriquecedora, educativa e socialmente envolvente para a comunidade local. “Queremos que o cinema funcione como ponto de encontro entre ideias diferentes e que seja uma plataforma que permita o debate entre ideias diferentes. Os Cine Clubes podem permitir esse desígnio se trabalharem para esse fim”, remata Rodrigo Francisco.

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