A paixão pelo campo nos socalcos do Douro

Na zona demarcada do Douro, com as suas famosas vinhas e com produtos de excelência, encontram-se os pequenos produtores agrícolas. Na freguesia de Sande, no concelho de Lamego, a população dedica-se ao cultivo dos seus terrenos.

Por Márcia Correia

O relógio toca todos os dias à 6:00 da manhã, é hora de ir para o campo com os trabalhadores. “Hoje é dia de pulverizar a vinha, dois homens a espalhar o remédio pelas videiras e duas mulheres a puxar as mangueiras”, começa José Monteiro, proprietário de uma quinta no Douro.

Durante muitos anos, José Monteiro fazia o trabalho do campo com os seus familiares, era uma forma de poupar dinheiro, mas aos pouco todos foram distanciando- se e tornou-se impossível fazer o trabalho sozinho com a sua esposa. “Os meus filhos foram obrigados a emigrar e eu fiquei sem ninguém, então tenho que pedir a outros trabalhadores que me venham ajudar a fazer os trabalhos”, continua o produtor.

Não tem trabalhadores fixos, pois tudo vai depender se já têm outros trabalhos para outros patrões. “Gosto de trabalhar sempre com as mesmas pessoas, mas às vezes é impossível porque vão trabalhar para outros sítios”, conta o agricultor.

José Monteiro é proprietário de uma quinta no Douro, sempre trabalhou no campo e não se imagina a fazer outra coisa. O produtor nasceu numa pequena aldeia do concelho de Lamego, sempre teve uma vida muito humilde, começou a trabalhar muito jovem para conseguir trazer dinheiro para casa. “Nunca tive a possibilidade de estudar muito, tínhamos de trabalhar, éramos muitos irmãos e o dinheiro do meu pai não dava para alimentar todos”, lembra José Monteiro.

“Gostava muito de ter estudado, tinha uma boa cabeça para a matemática, mas a necessidade fez com que deixasse os estudos de lado. Estudar era algo que não acontecia, íamos para a escola para aprender a ler e a contar, porque não havia mais futuro para além disso”.

José Monteiro

Como era um dos irmãos mais velhos viu-se obrigado a trabalhar. “Lembro-me tão bem de eu ter os meus 12 anos e levar dois sacos de adubo, um em cada mão, para o alto de uma quinta, eram subidas muito grandes, pareciam que não tinham fim”, continua o produtor.

A 3 de setembro de 1974 foi para a tropa, cumpriu alguns meses, mas um grave acidente retirou-o das opções para a Guerra do Ultramar. “Durante um treino levei um tiro no meu olho direito, fui logo retirado e já não fui para o Ultramar. Fiquei com a minha vida condicionada”, prossegue José Monteiro.

Aos 26 anos, José Monteiro decidiu expandir os seus terrenos, a sua única forma de rendimento. “Há 40 anos atrás comprei uma quinta pequena, precisava de assegurar o futuro da minha família. Dos meus pais só herdei um campo bastante pequeno e uma mata”, afirma o agricultor.

Sem dinheiro para pagar a trabalhadores, José Monteiro levou consigo para o campo toda a sua família. “No começo não tinha hipótese de pagar a trabalhadores, então era eu, a minha mulher e os meus 4 filhos que cultivávamos a quinta. Ensinei-lhes tudo”, confessa José Monteiro.

Os 4 filhos de José Monteiro dedicaram toda a sua infância e adolescência ao campo, tudo para ajudar o pai com o negócio que sempre sonhou, ser um produtor de vinho.

Patricia Monteiro, filha mais nova de José Monteiro, conhece outras realidades, emigrada na Suíça há mais de 12 anos confessa que apesar de muito trabalho não trocaria a vida no campo por nada. “Eu e os meus irmãos trabalhamos muito nestes terrenos. Quando chegávamos da escola, almoçávamos, trocávamos de roupa e lá íamos nós para a vinha com o meu pai e a minha mãe”, começa Patricia Monteiro.

Os terrenos íngremes e os socalcos da vinha trazem à memória um passado feliz.

“A vida antigamente era muito difícil, nós só queríamos brincadeira e muitas vezes vínhamos contrariados, mas quando aqui chegávamos transformávamos o trabalho em brincadeira para passar mais depressa então competíamos para ver quem acabava primeiro. O primeiro a acabar tinha direito a ir para casa 15 minutos mais cedo”.

Patrícia Monteiro

Com o passar dos anos o negócio começou a evoluir, José Monteiro começou a ter os seus primeiros clientes. “Eram clientes do Porto, vieram até minha casa e decidiram ajudar-me, eu levava vinho para casa deles no Porto e eles vendiam no estabelecimento deles. Naquela altura foram uns anjos”, afirmou o agricultor.

Os clientes começaram a aparecer e depressa esses clientes tornaram-se bons amigos. José Monteiro recorda a época mais divertida do ano, as vindimas. “Quando esses amigos vinham para a vindima era muita animação, traziam todos os seus familiares, cheguei a ter mais de 30 pessoas a vindimar na minha vinha. Eram muito trabalhadores e muito animados”, recorda José Monteiro.

Com tantos trabalhadores a vindima fazia-se depressa, da parte da manhã vindimava-se e de tarde era para pisar as uvas. “Na hora de pisar as uvas, entravam para dentro do lagar mais de 10 homens, de braços dados e ao som da concertina marchavam e cantavam. Bons tempos”, confessa o produtor.

A crise em 2009 e o negócio a decair

Durante muitos anos, o agricultor transportava para o Porto, grandes carregamentos de vinho para serem vendidos. “O negócio estava a correr muito bem, tinha muitas encomendas, mas tudo voltou a cair quando veio a crise de 2009, esses amigos tiveram que fechar o estabelecimento. Fiquei sem negócio e sem dinheiro”, confessa José Monteiro.

Com a crise e com o negócio a decair, o produtor não sabia o que fazer, mais uma vez voltou à estaca zero. “Estava a ficar muito apertado em termos de dinheiro, então a minha única opção era vender as minhas uvas para a adega cooperativa de Lamego. O sonho de ser produtor independente estava cada dia mais longe”, continua o lavrador.

Os anos foram passando e sem a possibilidade de voltar a fazer vinho em casa, continuou como sócio da adega de Lamego, “Ser sócio da adega fez com que não tivesse tantas dores de cabeça, a verdade é que o lucro não é o mesmo, houve uma grande quebra, mas pelo menos o valor de tantos meses de trabalho é visto na hora”, conta José Monteiro.

Mesmo com todas as dificuldades que tinha enfrentado não desistiu facilmente do seu grande sonho. “Atualmente faço vinho do Porto artesanal e azeite, devo dizer que são os melhores da região”, afirma o produtor.

A rotina do campo

José Monteiro criou uma rotina no campo e cuidados especiais para ter produtos de qualidade. “Para ter qualidade é preciso gastar muito dinheiro em produtos de qualidade. É para a vinha, é para as oliveiras, para as cerejeiras, macieiras e pereiras”, conta José Monteiro.

Nesta época do ano, a pulverização é um processo do cultivo das uvas muito importante, é feito de 15 em 15 dias devido ao calor para prevenir que apareçam bichos nas videiras que façam com que a uva apodreça.

“É dos trabalhos mais forçosos, temos de correr bardo a bardo, sem deixar escapar uma única videira, normalmente vai o homem com a agulheta a espalhar o remédio pelas videiras e a mulher fica no meio do bardo a ajudar a puxar as mangueiras. É preciso alguma força de braços”.

José Monteiro

Fátima Gouveia é uma das trabalhadoras que vem ajudar José Monteiro com os trabalhos da vinha. “Sempre vivemos do campo, não sabemos fazer outra coisa. Temos de aproveitar todos os trabalhos que nos aparecem”, começa Fátima Gouveia.

A vida do campo não dá descanso a ninguém, há trabalho durante todo o ano, faço chuva, faça sol. “Aqui nunca trabalhei com temperaturas muito más, nem muito frio, nem muito calor, mas já tive patrões que nos mandavam trabalhar com um calor de 30 graus”, confessa a trabalhadora.

O barulho do motor que dá força para o produto sair pelas mangueiras e a voz dos trabalhadores que são obrigados a falar muito alto não passam despercebidos.

Enquanto os trabalhos decorrem, na casa do produtor José Monteiro, está a sua esposa Márcia Monteiro, também ela agricultora, está a preparar o almoço para os trabalhadores. “Hoje a ementa é massa com carne. Temos que dar comidas consistentes para terem forças para trabalhar”, explica Márcia Monteiro.

Com a comida ao lume, Márcia Monteiro recorda os bons tempos em que tinha a casa cheia de pessoas prontas a ajudar. “Fazia-se tudo nesta garagem, temos os lagares onde ficavam as uvas e os pipos. Nunca tivemos coragem de nos desfazer de nada”, conta a agricultora.

As vindimas era a época do ano de maior alegria para estes produtores. A sua casa transformava-se em uma adega cheia de voluntários. “Colocávamos muitas mesas e comíamos todos juntos, depois de comer era hora de entrar no lagar. Era uma animação total”, recorda Márcia Monteiro.

Enquanto o produtor cuida da sua propriedade, Márcia Monteiro trata da sua horta, cultiva de tudo sem qualquer produto químico. “Tenho batatas, alfaces, tomates, feijão, favas, ervilhas, morangos, nabiças e couves. Não utilizo produtos nestes alimentos, só água, com este calor precisam de muita água”, conta a produtora.

Por volta das 12:00 horas, com o trabalho concluído é hora de ir almoçar. Márcia Monteiro preparou a mesa e está pronta para servir o almoço. A massa com carne, especialidade de Márcia Monteiro é feita com muitos produtos da sua horta, com batatas, com feijão e com a couve.

Todos sentados à mesa, conversam sobre a vinha e como correu o trabalho. Almoço concluído, está na hora de regressar a casa e descansar.

José Monteiro dedicou toda a sua vida ao cultivo dos seus terrenos e como tal está sempre preocupado com a possibilidade de alguma coisa correr mal. “Não consigo estar quieto em casa, vou mais um bocadinho até ao terreno conversar com as videiras”, confessa o produtor.

“O campo é e sempre será a minha grande paixão, mesmo não tendo ajudas faço isto porque gosto mesmo”, conclui José Monteiro.

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