A voz esquecida. Cigano de Nascença

A maioria das pessoas carrega uma imagem negativa da etnia cigana. São muitos os adjetivos que estão pautados na voz da sociedade. A “mente nómada” atribuída socialmente existe desde o séc. X, quando Portugal ainda não era Portugal. Vindos do Noroeste da Índia, em direção à Europa, encontraram o extremo ocidental da Península Ibérica e Portugal foi um dos países escolhidos pela etnia cigana. Lusitanos, Visigodos, Celtas e Mouros misturaram-se com o povo português, mas por algum motivo a etnia cigana não se misturou. Nómadas durante séculos, carregam várias tradições, vários lemas e regem-se pela expressão “o céu por teto, a terra por pátria, a liberdade por religião”. Segundo a reportagem “Uma longa Sina”, exibida pela TVI, existem atualmente, em Portugal, cerca de 40 a 60 mil ciganos, mas o povo chega a falar em 100 mil.

Na cidade de Viseu, apenas uma minoria considera que um cigano é uma “pessoa normal, tem outra maneira de se viver, é um povo unido”. É diante destas minorias que começa a ideia de mudança. A realidade da vida de tantas pessoas que por carregarem a palavra “cigano” como “apelido” veem os seus direitos enquanto cidadãos não reconhecidos é uma realidade, tal como António Pinto Nunes, representante da Federação Cigana Portuguesa referiu recentemente na TVI: “Somos cidadãos de segunda classe, não nos são reconhecidos os mesmos direitos (da população em geral), mas temos os mesmos deveres”.

Marisa Amaral, Maria dos Anjos, António Soares e Vânia Lourenço são todos de etnia cigana. Apenas Vânia Lourenço aceitou revelar a sua imagem, mas todos falaram com o #dacomunicação.

Por Diana Lopes

Os 3 pilares ciganos: Casamento, luto e leis de apaziguamento

“Não existe o namoro em termos de relações. Isso é só mesmo para o casamento. A tradição é essa. Já há quem quebre as regras. E homem da etnia que toque naquela menina por mal, ele vai ter de ficar com ela, praticamente já é casado com ela. Tem de assumir o compromisso”, Marisa Amaral, cigana, 38 anos, trabalhadora independente.

O casamento é uma das tradições ciganas mais comentadas popularmente. Quem nunca ouviu falar de que o casamento cigano dura 1 semana inteira? Marisa Amaral, 38 anos, trabalhadora independente, é mãe de família em Viseu e vivenciou o que é casar dentro dos padrões ciganos. Atribui a palavra “festa” ao ato matrimonial. “Antigamente eram 3,4,5 dias, agora passou a 1 dia. Ao outro dia vão só as pessoas, familiares, comer o resto que sobrou.”

A ideia da longa durabilidade da festa do casamento é acompanhada pela ideia de que os pais escolhem os futuros companheiros para os seus filhos. Recuando no tempo, é possível afirmar que os próprios pais escolhiam o/a pretendente e sem perguntar se gostavam ou não, davam seguimento à grande festa. “Umas vezes dava certo, outras vezes não”, relembra Marisa Amaral.

E quem acha que a expressão “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” não se aplica ao “mundo” cigano, está enganado. O casamento, que era uma prática sagrada, está nos dias atuais a perder a adesão, mesmo entre os ciganos. Maria dos Anjos, cigana, 74 anos, compara os tempos passados aos atuais: “O casamento não se faz na igreja, o amor não vem da igreja. Muitas pessoas não casam, porque já não precisam de se separar. Até aqui acontecia só na vossa etnia, agora também é na nossa”.

E como homem, António Soares não desmente a afirmação de Maria dos Anjos. Os 80 anos que carrega e a vida cigana a que teve direito dão-lhe propriedade: “Eu não sou casado pela igreja. Tenho filhos, netos, bisnetos. A amizade não se vai buscar à igreja. Juntamo-nos pronto, é igual. Nunca me viram de forma errada por não ter escolhido seguir o casamento pela igreja.”

Tal como no casamento pela igreja, também em relação ao luto, cada um decide, de forma individual, como o viverá. E este é o outro pilar pelo qual a etnia cigana carrega respeito. Segundo o site da AMUCIP, Associação de Mulheres Ciganas, constituída em 2000, que trabalha para o desenvolvimento das crianças e mulheres ciganas em Portugal, o ritual de luto tem as suas singularidades. A mulher, ao ficar viúva, costuma cortar o cabelo e cobrir a cabeça. Usam-se dois lenços: um mais pequeno, interior, cobre o cabelo. O outro lenço, maior e exterior é utilizado desde a cabeça até à cintura. Os detalhes são a demonstração da dor. Maria dos Anjos perdeu todos os filhos homens. Eram 4. “Já sofri de tudo um pouco. Mortes, desgosto. O último que tinha de filhos homens, morreu esbarrado. Eu revoltei-me”, conta.

Os ciganos costumam ser vistos como pessoas revoltadas, que agem por impulso, “conflituosas”. Mas, há regras estabelecidas para a resolução de problemas. Tal como o site da AMUCIP relata Os mais velhos são tidos como pessoas com sabedoria e importantes para a coesão da comunidade” e o papel do homem “é de protetor. Há um problema qualquer, e como eu sou uma pessoa com uma certa idade, chamam-me a mim. E eu resolvo. A tendência é chamar um homem mais velho”, acrescenta António Soares, 80 anos. Como feirante já se viu no papel de apaziguador, ou o cumpridor da lei de apaziguamento como é conhecida pela comunidade cigana.

 

Tráfico, violência, abusos

É habitual associar o tráfico, a violência e os abusos à etnia cigana. A palavra cigana é associada também “ao medo”, como reflete Marisa Amaral, de etnia cigana. Pensa também que há casos excecionais em todas as culturas e que há os bons e os maus. O estereótipo está presente, pois os ciganos também sentem medo, para surpresa de muitas pessoas. “Quem não tem medo?”, questiona António Soares, 80 anos, feirante em Viseu.

Esta ideia errada que se forma na sociedade é, aos olhos de Maria dos Anjos, um problema que vem diretamente de ideias pré-concebidas. “Se mandasse mudava muita coisa: outra raça faz tudo e mais alguma coisa, não é nada, acabou. O polícia vende droga, rouba o Estado, as multas metem ao bolso… O cigano mata, e é isto e aquilo”, comenta.

Ao analisar a sequência das notícias, apenas em Portugal, vamos dar-nos conta que:

“Na nossa etnia o que tem de melhor é: pode haver uma briga, mas passa rápido. A respeito dos filhos matarem os pais, as mães, os filhos… na nossa raça há pouco. Assim como a violação. Essa não se vê. Na nossa etnia, a nível europeu, não se vê dizer aquele pai violou a filha, aquele tio violou a sobrinha”, Maria dos Anjos, 74 anos, reformada e ex-feirante.

 

Feiras, Ciganos e Chineses

Há 20 anos a comunidade cigana dependia das feiras, pagava-se em escudo e os chineses ainda não tinham chegado. Os ciganos vendiam muito barato e ajudavam a vestir e a calçar os seus clientes. Hoje, o negócio já não é igual. As roupas são mais baratas nos chineses. Muitos ciganos estão a deixar os negócios e, sendo uma população com um longo histórico de vida em feiras, consideram que ninguém imagina a vida por detrás de uma barraca.

“A gente sofre muito. Levantávamo-nos às 4H30, 5H, 6H. Quando é a época dos emigrantes, a gente já tinha de ter o artigo todo pronto muito cedo. Depois a gente chegava a casa, tinha os filhos, a casa. Deitava-me 1h/2h da manhã, a passar a ferro. Andei na feira quase 45 anos”, conta Maria dos Anjos, 74 anos, reformada e ex-feirante.

O cigano escolhe as feiras porque não tem oportunidade e as portas estão sempre trancadas. Não há possibilidade nenhuma a não ser por conta própria, descreve Marisa Amaral.

A feira das Talhas é mencionada por esta mulher, que mesmo a trabalhar por conta própria, cresceu no meio das feiras. Essa feira durava cerca de 18, 19 horas, sempre a trabalhar. Já as feiras de Aveiro duravam 2, 3 dias e “nesse caso tínhamos de dormir lá. Não havia sítios para tomar banho, para irmos à casa de banho e a gente tinha de montar uma tenda para tomar banho, fazer comida, fazer tudo. E as pessoas não imaginam o sofrimento por trás, porque temos de fazer de tudo para dar de comer aos filhos”, reflete Marisa Amaral.

Há sempre uma causa por detrás de qualquer escolha. A escolha de um cigano que ganha o pão para si e para os seus filhos através das feiras, não foge à regra. Em declarações à revista magazine, em Portugal, o estudo mais completo sobre a relação dos ciganos com o trabalho remonta a 2014. Na altura, 57% dos inquiridos dizia nunca ter trabalhado. Entre os restantes, a venda ambulante era a principal atividade económica.

 

O trabalho e o RSI

A regra da vida é que só sobrevive quem trabalha ou quem, de uma forma mais justa ou menos justa, alcança possibilidades financeiras. Mas e quando não conseguimos o trabalho que dará sustento aos nossos filhos? Com base no PORDATA, o Índice Sintético de Fecundidade por mulher, ou seja, o número de filhos por mulher em Portugal passou de 3,20 em 1960 para 1,37 em 2017. Mesmo com 1 filho, a situação em Portugal não é vista nos melhores momentos, e cada vez é mais apertado ter dinheiro para sustentar esse mesmo filho.

Entre a etnia cigana, onde a média ronda os 4 a 5 filhos, as portas encontram-se muitas vezes fechadas ao emprego, porque carregam no rosto a palavra “cigano”. “Já existem pessoas que aceitam, que têm a mente aberta, mas é só a partir de agora”, reflete Marisa Amaral, 38 anos, trabalhadora independente.

A ideia de que o trabalho é só para alguns verifica-se na comunidade cigana. Só aqueles que viajaram muito, como António Soares, e que conviveram com outros povos, conseguem integrar-se de forma diferente na sociedade em geral. “Eu sempre viajei para o Brasil, Luanda, Angola, Cabo verde, São Tomé e Príncipe. Então nunca senti essa barreira.”  Quanto aos que ingressam na escola, crescem e constituem família num mesmo local, que seja conservador, é mais difícil serem desfeitos os estereótipos e os julgamentos.

“O meu genro é de Mangualde e estudou lá. E há uns anos atrás foi chamado ao centro de emprego e foi mandado para uma fábrica em Mangualde. Conheceram que ele era de Mangualde (…). Disseram “não”, discriminaram logo. Depois foi chamado para outro trabalho e foi o mesmo”, conta Maria dos Anjos, 74 anos, reformada e ex-feirante.

Porém, a sociedade está a mudar e “já há muito ciganos empregados a nível fixo”. A jovem Vânia Lourenço, estudante de Direito, com 21 anos, acredita que este é um trabalho longo, mas acredita que dará frutos.Eu costumo dizer que a mudança tem de ser da parte dos ciganos, mas também dos não ciganos, reflete a jovem.

Outro dos estereótipos associados à etnia é que os ciganos dependem do Rendimento Social de Inserção, mas a visão da população contraria esta ideia:

“Os ciganos querem trabalhar, há muitos anos. Aqui em Viseu, querem trabalho mesmo, andam todos nos cursos”, diz Maria dos Anjos, 74 anos, ex-feirante.

Marisa Amaral concorda com a ideia e defende que a sociedade maioritária acha que o RSI é dado aos ciganos por não quererem trabalhar. “Alguns dependem” do rendimento, “porque não encontram trabalho”, afirma. E Maria dos Anjos confirma: “Muitos, não só da nossa etnia, se não fosse o rendimento e o abono das crianças, morriam à fome.”  Maria dos Anjos viveu das feiras durante 45 anos e acabou por desistir, por causa da falta de lucro. Hoje, com 74 anos, frequenta cursos para desempregados “para espairecer a cabeça” e considera que alguns ciganos de Viseu já têm trabalho fixo, mas outros também frequentam estas formações. “Eles querem alguma coisa, nem que seja um curso, não são malandros como o povo diz”, defende.

Uma das grandes questões centra-se no papel que a mulher cigana assumia na comunidade no passado e a grande mudança para a atualidade. Nas palavras de Sónia Matos, responsável pela direção da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, a mulher cigana tinha como objetivo saber ler e escrever. O percurso escolar ia apenas até ao 4º ano. A feira era o próximo passo na “escola” de uma menina cigana. “Antigamente as pessoas não ciganas também só cuidavam da casa e dos filhos. Mas a etnia não cigana evoluiu um pouco mais rápido e nós também estamos a evoluir, mas mais lentamente”, afirma Sónia Matos.

“Costumo dizer que o processo de integração na sociedade da mulher cigana é idêntico ao da mulher portuguesa em geral, só que com 40 anos de atraso”, conclui.

O RSI, criado em 1996, garantiu, aos olhos de Sónia Matos, a oportunidade de meninas sem oportunidades de estudo, poderem chegar a casa e dizer que tinham um contrato e eram obrigadas a ir à escola. Foi importante também para levar o Estado a preocupar-se com a escolaridade cigana e às próprias instituições pelo acolhimento em escolas que antes era apenas dedicada a crianças não ciganas. O problema é a pouca progressão nos estudos.

Apesar destas mudanças, a mulher cigana deve obediência ao seu marido, sendo ele o protetor da casa e o representante da família. Mas, atualmente já sente que é reconhecida. António Soares, fala com propriedade que se a “esposa falar com outra pessoa qualquer, eu não tenho problema nenhum. Ela tem voz, independentemente de ser mulher”.

 

 O caso da Escola de Paradinha

Ter voz ativa é o que a comunidade cigana anseia há séculos. E a mágoa por não ter essa voz reconhecida já começa a ser resolvida no que se refere à escola. Hoje em dia, na escola de Paradinha, em Viseu, ciganos e não ciganos podem aprender juntos. Mas nem sempre foi assim.

A Escola do 1º ciclo do bairro de Paradinha era frequentado por crianças não ciganas. O bairro tinha má fama. Mas o jardim de infância praticava o contrário: incluía a comunidade maioritária e minoritária. As crianças sentiam-se acolhidas, mas quando estava na altura de entrar para o 1º ano, a comunidade não cigana não colocava os seus filhos na Escola Básica de Paradinha. Tinham de se deslocar para outras escolas, longe da sua própria casa.

Nada muda enquanto ninguém tomar uma atitude. Foi o que Mara Maravilha,

presidente Associação de Pais Escola de Paradinha, decidiu fazer: ir contra as ideias

da sua própria comunidade. Ouviu muitas vezes, como demonstra a reportagem do Público “Com tantas escolas em Viseu, foste pôr as tuas filhas em Paradinha!”. Essa foi a atitude dela. Como representante da Associação dos Pais decidiu colocar as suas próprias filhas na escola básica de Paradinha e não foi preciso muito tempo para a realidade mudar. Hoje, estamos diante uma escola inclusiva.

Tem “um projeto de ensino inclusivo, que possibilita que a instituição escolar seja frequentada por todo o tipo de alunos”, afirma o presidente da Câmara Municipal de Viseu, Almeida Henriques em declarações ao Jornal do Centro.

O diretor do Agrupamento de Escolas Infante D. Henrique, João Caiado, em declarações ao mesmo jornal, acredita que inserir a comunidade cigana com a não cigana é “um processo lento trabalhar com miúdos da etnia cigana, nós queremos que em primeiro lugar haja mudanças de comportamento e em termos de Agrupamento, tem sido a nossa grande luta”. É necessário adaptar a sociedade a qualquer cultura e não a cultura adaptar-se à sociedade. É uma mudança de mentalidades.

Os professores são elementos essenciais para fazer a integração na mente da criança.

 

LNÓMADAS, ROMED e OPRÉ

Ter professores ativos na construção de uma ligação entre diversas culturas é dinamizar as comunidades ciganas. Há diversas formas de colocar a comunidade cigana em pé de igualdade com a comunidade maioritária. Bruno Gomes, figura central nos projetos LNÓMADAS, ROMED e OPRÉ, já esteve por de trás de várias conquistas para ultrapassar o preconceito. Os projetos centram-se nas crianças e jovens.

Segundo Bruno Gomes, a LNÓMADAS promove a escolaridade; empregabilidade; igualdade de oportunidade no ensino superior; formação e transmissão de conhecimentos. A ligação com a ROMED é clara desde 2013. Este programa foca-se no emprego, serviços de saúde e educação de qualidade.

Já obtiveram resultados na “campanha de sensibilização promotora da escolarização, incentivar os pais ciganos, para a importância da escola na vida ativa dos seus filhos e motivar os jovens ciganos através de bons exemplos (da comunidade) para o exercício de uma cidadania ativa, tendo como pano de fundo a ESCOLA”, dados disponibilizados por Bruno Gomes.

O projeto ROMED, desde 2016, é parceiro do programa governamental OPRÉ. O dinamizador de bolsas de estudo no Ensino Superior que apoia 25 jovens ciganos.

As mentalidades precisam mudar, e “se não houver programas que reparem o ostracismo a que os ciganos foram vetados durante 5 séculos, dificilmente haverá aproximações”, acrescenta o Vice-Diretor da LNÓMADAS e ROMED, conclui a ideia em que acredita que “a diversidade é que faz a sociedade rica”. Por isso a necessidade de existir um esforço entre a comunidade cigana e não cigana pela igualdade. A igualdade começa em casa e na escola.

 

Cigana e o sonho de juíza

Vânia Lourenço, estudante do curso de Direito

São estes projetos que ajudam jovens como a Vânia Lourenço, a única jovem cigana em Viseu a frequentar a universidade. Está no 2º ano e é uma das poucas ciganas a estudar Direito em Portugal, no Porto. Pensa não ter feito uma escolha entre universidade ou cumprir as tradições da sua comunidade.  São “coisas distintas, mas podem perfeitamente coexistir”, reflete.

O projeto ROMED foi um alicerce para a sua entrada na universidade e como “um grupo espantoso” conseguiu encontrar jovens da etnia cigana com os mesmos objetivos de vida e, dessa forma, entreajudarem-se nas dificuldades. Está no grupo desde que entrou na universidade. Assim, não só as cidades maiores como Lisboa ou Porto, mas cidades como Viseu, podem ser beneficiadas desse projeto.

Vânia sente que a decisão de ingressar na universidade foi em parte incentivo da família, mas que o seu pai teve maior influência na decisão. Não teve oportunidade de estudar e teve que “se virar desde muito cedo porque não conseguiu estudar. Ele costuma sempre dizer para nós fazermos aquilo que ele não pode.”

A jovem quer ser o exemplo para a sua família e para tantas crianças e jovens a quem sempre disseram que estudar não era essencial. Várias crianças de etnia cigana encontram Vânia e surpreendem-na com a ideia de que assim como ela está a estudar, mais tarde, também querem. “Surpreende-me um bocado pois não é costume e as crianças olharem para mim e dizerem que querem ir para a escola é algo que me deixa feliz, e que me diz que não estou a fazer isto em vão.”

A universidade tem aberto horizontes a Vânia Lourenço, e, apesar de não ter sentido preconceito enquanto cigana no início da sua caminhada escolar, houve momentos menos positivos que a marcaram.

“O meu professor gostava de explicar uma matéria sobre os negócios e disse: nós também podemos partir do princípio de que as pessoas não são como os ciganos e que agem com boa fé”, como se os ciganos fossem todos maus. Fiquei um pouco sem reação”, recorda.

O que a anima é saber que, apesar de não poder fazer a justiça toda no mundo, se, através dela, alguma poder ser aplicada, diz sentir-se satisfeita.

Em breve estará formada, pois o tempo não para, mas a ideia base da vida de Vânia é gostar de mostrar aquilo que é e afirma que nunca irá conseguir estar num ambiente de trabalho ou até numa amizade sem que as pessoas a aceitem por aquilo que é.

Sou cigana e não tenho nada que esconder. Ser cigano não é uma coisa má pelo contrário, é uma coisa que me dá muito orgulho. E se tiver que levar com as consequências positivas ou negativas, eu vou levar, mas nunca vou esconder aquilo que sou. Eu quero ser feliz como toda a gente e acho que isso não vai ser possível se eu tiver que viver com medo de que as pessoas saibam que eu sou cigana”, Vânia Lourenço, 21 anos, cigana, estudante de Direito.

A jovem estudante tem revolucionado as ideias dos mais jovens ao seu redor e em Viseu. Acredita que um cigano pode ser ele mesmo, com a sua cultura, mas com mais algum conhecimento.

 

Discriminação e a Luta pela igualdade

Apesar de Vânia Lourenço estar a destacar-se como cigana, ainda há muitas desigualdades na comunidade minoritária. A luta pela igualdade está há muitos anos a tentar ser implantada. A discriminação está aliada à palavra “cigano”.  São vários os casos de revolta. Exemplos de vida que serão descritos abaixo e que mostram a voz de tantos ciganos em Portugal, que muitas vezes, vivem calados.

“Num hospital se for preciso, chamam outra pessoa e não chamam a gente. Às vezes temos razão de falar, as outras pessoas é que fazem o mal e ainda ficam com a razão e o direito a falar”, Maria dos Anjos, 74 anos, reformada e ex-feirante.

“Há algumas pessoas que só por dizer que é cigano já começam a olhar de lado, porque tem-se a ideia que ser cigano é pressuposto para se cometer um crime e não é, Vânia Lourenço, cigana, estudante de Direito.

“É uma vida difícil. Porque os ciganos vão a uma aldeia vender “ah vem ali um cigano”, eu não acho isso bem, António Soares, 80 anos, cigano, feirante.

A vergonha por mostrar a sua real identidade é uma das consequências desta falta de igualdade.

“Tenho alguém de família que já de pequena, esconde a identidade. Vê-nos passar e finge que não nos vê. Tenta passar que não é cigana. Ela namora com um rapaz não cigano. E quando passa por nós finge não nos ver e aquilo custa-nos. Existe muitas que o fazem e seguem aquilo que querem, ficam com um rapaz não cigano, mas não precisam estar a esconder o que são. É a essência dela. Ela está-se a enganar a ela própria”, Marisa Amaral, 38 anos, cigana, trabalhadora independente.

 

O Bairro, A BALSA

A vida na Balsa decorre naturalmente. Localizado junto à Central de Camionagem de Viseu, é quase impossível chegar a Viseu e não se deparar com o bairro. Pessoas ciganas e não ciganas vivem ali. Ao longo de vários blocos, os ciganos concentram-se numa parte deles e os não ciganos na outra. É aqui que são vistas as famílias numerosas e os inúmeros filhos a brincar na relva que decora as entradas dos blocos. É aqui que as roupas estendidas nos varais, são colocadas a secar no outro lado da estrada, sem qualquer vergonha ou receio.

É aqui que vivem novos e velhos. Ciganos, não ciganos e os que não veem na sua etnia uma diferença racial. Mas há quem veja. Marisa Amaral vive aqui, assim como Maria dos Anjos e revelam as suas ideias.

“Em Portugal, quando fazem um bairro fazem-no e em vez de por um cigano aqui e outro além, vamos pô-los todos juntos. É pior, porque juntam-se todos cá fora e há as confusões. É como os negros que os juntam todos. Eu penso que a raça mais discriminada somos nós ciganos e as pessoas de cor (negras)”, Marisa Amaral, cigana.

Não. Aqui não. Mas noutros bairros há muita discriminação. Aqui em Viseu mesmo. Agora, a maior parte das pessoas conhecidas vêm-me na rua, param, abraçam-me, beijam-me. Homens igual. Os conhecidos da feira. Eu ando numa formação, e uma senhora em que a mãe dela vinha fazer-me limpeza à casa ficou feliz de me ver, ela apanhou-me as mãos e não me largava”, Maria dos Anjos, cigana.

O bairro, a Balsa, como é chamado, é onde existe tanto o conflito como a serenidade. Segundo as declarações de ambas, Maria e Marisa, os ciganos são pessoas sempre unidas, mas também quando mexem com eles são os piores uns para os outros. “Tanto são amigos como se podem matar uns aos outros”, mas concluem e afirmam que a tendência é ajudar e defender o parceiro. Os problemas dos outros são como os problemas deles.

 

“Cigano é cidadão português”

Pessoas simples, pessoas ciganas. É assim que se definem. Na voz das mulheres ciganas, consideram que para serem felizes apenas precisam de um casamento feliz, terem maridos bons para elas e para os filhos. Que sejam trabalhadores, pobres, mas amigos da casa e da mulher. “Isso é o que a gente adora”, Maria dos Anjos. Mas a saúde também é necessária, a paz, terem aquilo que é seu por direito. Gostam de estar uns com os outros, felizes.

Na voz dos homens, através de António Soares, é ainda mais simples explicar o que traz felicidade à etnia cigana: “Tudo, ter uma família, filhos e netos.”

Na sociedade do século XXI, subsistem ideias pré-concebidas. Os ciganos carregam a dor do julgamento, do apontar do dedo. Têm medo, como qualquer outro cidadão português. Na verdade, “um cigano é um cidadão português”, explica António Soares.

Portugueses e com tradições, muitos tentaram quebrar as regras impostas na cultura cigana, como Marisa Amaral, quando se deparou restrita na tentativa de quebra das tradições. Mas as mesmas são importantes, assim como o código da estrada, para “evitar acidentes”. Sente que quando abriu os olhos já era tarde e que perdeu uma oportunidade de ser feliz por dar asas ao que não devia.

União é o outro alicerce da comunidade. Podem passar por dificuldades financeiras, mas ajudam quem quer que seja que lhes bate à porta.

“O cigano é assim: tens fome? Ele leva-te a casa dele e dá-te de comer. Sejas cigana ou não sejas. Mata-te a fome. Na nossa etnia, se tiveres que morrer à fome, à fome morres”, Eduarda, não cigana, ajudante Sr. António Soares.

“E o cigano é aquela pessoa que lá no fundo tem pena. Vê alguém, uma mulher levar porrada de um homem. Ele vai dar a cara por aquela mulher e ninguém vê isso”, Marisa Amaral, cigana, trabalhadora independente.

Este é o retrato de quem vive em Portugal há mais de 600 anos. O romani, também chamado o Romanês é a sua língua mãe, que se foi perdendo aos poucos dadas as perseguições dos povos dominantes e que a proibiram. Mas não só a língua se pode perder. Pode-se perder gente com sabedoria, gente boa e gente com uma cultura rica.

Esta é a voz esquecida. São ciganos de nascença. Têm os mesmos direitos do de qualquer cidadão português.

O futuro é de esperança, para que um dia a etnia cigana se possa integrar na sociedade de forma total, “mas vai demorar muito tempo, assim como os homens aceitarem as mulheres e a igualdade”, Marisa Amaral.

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