A esperança deveria ser a primeira a morrer

A violência doméstica tornou-se crime público em 2009, desde então as denúncias têm vindo a aumentar a nível nacional, sendo a principal vítima a mulher. Em 2015, segundo Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica (NAVVD), Viseu recebeu mais de 600 queixas de violência doméstica, tanto no núcleo como na GNR e PSP, maioritariamente de vítimas do sexo feminino. Apesar de as autoridades e as associações colaborarem com a vítima, muitas ainda sofrem em silêncio.

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As mulheres estiveram durante muito tempo subordinadas ao poder do homem e da sociedade. O sexo feminino era visto como objeto e não tinham qualquer autoridade. Os homens e as suas opiniões lideravam e conduziam a sociedade.

Com a evolução e o conhecimento, a mulher decidiu impor-se e conquistar o terreno que sempre pertenceu ao homem. Surgiu então uma nova era que ambicionava os direitos de igualdade entre os sexos, devido a isso, inicia-se o feminismo no século XIX com o lema “Igualdade, liberdade e fraternidade”. Contudo, apesar da mente das mulheres desejar os três princípios, o pensamento masculino, por vezes, não apoia a igualdade.

Surge então como forma de combater o feminismo a violência. A guerra e a agressão foi uma das formas mais usadas para conquistar terreno e leis, devido a isso, muitos homens vêm a agressão como impedimento do feminismo. A cultura impôs durante muitos anos a submissão das mulheres, sendo que a opinião e as decisões eram posteriormente aprovadas pelo homem. As mulheres que opinavam eram vistas como rebeldes sendo castigadas com violência, levando a uma maior dificuldade em conquistar os seus direitos.

A violência era usada como castigo e censura e estava implementada na sociedade, devido a isso ninguém se opunha ou impedia qualquer ato de sofrimento. Durante muitos anos, quem praticava violência não era punido pois a sociedade apoiava a agressão.
A consciencialização da sociedade e dos crimes tornaram a violência um ato reprovável, levando a penalizações sobre quem o praticar. Apesar de ser crime, a violência ocorre às escondidas da sociedade.

A violência doméstica

A violência doméstica carateriza-se pela agressão física ou psicológica num contexto familiar, ou seja, entre parentes. Apesar da sua grande maioria ser direcionada à mulher, esposa ou companheira, esta pode ser praticada pelos filhos, pais, ou outros familiares. A força foi sempre a arma mais utilizada pelo Homem, devido a isso, a violência é vista como a solução para diversos problemas. Apesar de a violência sempre ter existido, ganhou notoriedade a partir dos anos 70, devido a exigência dos direitos de igualdade. O feminismo teve um papel essencial na luta pelos direitos das mulheres, sendo que os anos 70 marcam a defesa e a luta das mulheres. Ainda que os homens sofram de violência, a grande maioria é direcionada às mulheres, devido a isso o feminismo, tornou-se mais impactante.

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Em Portugal, a penalização para este tipo de crime iniciou-se em 1999 com a lei nº107/99 que promovia instituições de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica. Contudo, em 2009 a lei foi renovada, criou-se o estatuo de vítima, os processos tornaram-se de cariz urgente, foram disponibilizados meios técnicos de controlo dos agressores, foi aprovada a detenção do agressor fora de flagrante delito, as vítimas passaram a ter o direito de serem indemnizadas.

Crime público
Em 2009 a constituição portuguesa, tornou a violência doméstica um crime público. Facilitando as denúncias por parte de quem tem conhecimento destes crimes, deixando de ser apenas a vítima a fazer queixa. Desde a aprovação da lei, foi notório o aumento de casos denunciados, segundo a Associação de Proteção à Vítima (APAV) de 2013 para 2014 o número de denúncias aumentou em 12,4%, sendo que a maioria das vítimas continua a ser do sexo feminino, cerca de 130 mulheres por semana sofreram violência doméstica, um total de 6 774 mulheres em 2014.

No ano passado, as estatísticas disponibilizadas pela APAV revelaram novamente um acréscimo de denúncias do crime de violência doméstica, cerca de 13%. Apesar da violência doméstica ser dirigida a qualquer idade, sexo ou etnia, as mulheres continuam a ser o principal alvo, em 2014 morreram 42 mulheres em Portugal, assassinadas pelos companheiros ou familiares próximos.

O aumento foi também visível a nível distrital, segundo o NAVVD em 2015 foram denunciados 190 casos de violência doméstica e 80 pedidos de acolhimento ao núcleo de apoio à violência doméstica de Viseu, até então já surgiram mais de 90 novos pedidos de ajuda, sem contar com os pedidos feitos à PSP e GNR, contudo ainda muitos casos são escondidos, como refere o Comandante dos Bombeiros Municipais de Viseu, Jorge Antunes. “Em Viseu apesar de menos ainda há alguns casos, aliás, ainda apareceram muitos casos, antes de ser o 112 a fazer as urgências desse cariz. Apesar de muitas mulheres ainda terem um certo receio de contar as suas histórias ou de pedir ajuda, mas ainda há alguns casos”, diz. O enfermeiro José António Costa do Hospital São Teotónio em Viseu, sustenta o aumento das denúncias, segundo este “o número de episódios reportados à polícia e ao hospital tem vindo a aumentar”.

As agressões cometidas em Viseu recaem maioritariamente em vítimas do sexo feminino apoiando as estatísticas nacionais, contudo “também ocorrem alguns casos de filhos a agredirem os progenitores principalmente de idade mais avançada”, como avança Jorge Antunes. Além das mulheres, em Viseu, os idosos são também vítimas de violência, como afirma o enfermeiro “esposas e idosos, por parte de familiares, são os que sofrem mais, maioritariamente são do sexo feminino em relação aos maridos companheiros namorados”.

Os profissionais da saúde têm um papel fundamental no auxílio à vítima, pois a maioria das vezes as vítimas recorrem a eles, mesmo antes de chamarem as autoridades, são, portanto, muitas vezes vistos como os mediadores entre a polícia e a vítima. Segundo o José Costa, muitas vezes a polícia só é contactada após a vítima dar entrada no Hospital, “em primeiro alerta-se logo as autoridades policiais, elas deslocam-se ao hospital e levantam um auto de notícia e depois é averiguado”. A lei proteger a vítima após a denúncia de agressões físicas e psicológicas, contudo muitas ainda têm dificuldade em pedir ajuda, como adianta o comandante “como no resto do país ainda é um pouco tabu, aliás têm medo de dizer, às vezes há represálias. A justiça também não é breve a resolver estes casos. Já se tem visto situações em que a pessoa desiste da justiça e a violência volta a acontecer. A justiça demora muito tempo a agir então volta tudo ao princípio”. As questões culturais e a discriminação provocada por estas, leva à inibição de denúncias destes crimes, levando ao sofrimento em silêncio, como relata o enfermeiro “tem a ver com uma questão cultural, o não querer interferir na vida particular dos outros. Eles tem a noção que é um crime e que deve ser reportado”.

Tornou-se crime público em 2009, contudo segundo o profissional de saúde José António Costa, grande parte da população não tem esse consentimento, “ provavelmente ainda há muita gente que não tem a perceção de participar um crime público e alertar as autoridades. As pessoas mais novas e culturalmente mais evoluídas têm essa noção e colaboram mais nestes crimes”. Carla Andrade, coordenadora do NAVVD apoia José Costa “eu tenho a ideia que as pessoas continuam com algumas limitações para denunciar as situações de violência domestica que conhecem do vizinho ao lado, por terem receio de represálias por acharem que não se devem meter, por acharem que não e nada com elas. Daí que o NAVVD tem feito campanhas de sensibilização e informação, para que as pessoas entendam que é um crime publico, e que elas podem estar a ser coniventes com um crime. Existe uma lei de proteção de testemunhas, que sendo solicitada ao juiz poderá ser utilizada”. Além do receio de contar, grande parte das vítimas não denúncia devido a questões económicas, pois apesar do feminismo estar presente na sociedade, grande parte das mulheres dependem financeiramente dos maridos, sendo, por vezes, impossível autossustentarem-se após fazerem queixa. O comandante dos bombeiros afirma que “os fracos rendimentos levam ao medo de denunciar”.

A violência doméstica destina-se a qualquer cidadão assim como o agressor pode ser de diferentes classes sociais, idade ou sexo segundo o enfermeiro José Costa “ hoje em dia é transversal a classes económicas, social económicas, a perceção que temos é que esta ligado a pessoas com classes sociais e estratos sociais mais baixos, contudo não tenho a perceção da maioria. Hoje em dia aparecem casos de todo o tipo, quer culturalmente, economicamente, meios rurais, urbanos”. A APAV, por sua vez, identifica as caraterísticas mais comuns do agressor, a grande maioria é do sexo masculino, a idade é compreendida entre os 25 e 45 anos, são consumidores ativos de drogas e álcool.
A vítima e o apoio
Em 2013 foram denunciados à APAV 100 casos de agressões em Viseu, aumentou 25 casos no ano passado. Muitas das vítimas não assumem o crime, levando a muitos casos desconhecidos. Segundo o enfermeiro do Hospital São Teotónio, muitos casos começam durante a adolescência “as agressões começam aos 15,16 anos durante a fase de namoro, e isso é encarado com uma naturalidade e mais tarde percebe-se que era grave“.

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A violência doméstica é inerente a idade ou sexo, podendo começar enquanto a vítima, ainda, é jovem e prolongar-se até à vida adulta. Apesar de a sociedade começar a tomar consciência do crime, ainda é assumido como um ato de amor por algumas vítimas, que perdoam vezes sem conta atos de violência. O número maior de vítimas tem a idade compreendida entre os 25 e 45 anos, tal como os agressores, por norma são mulheres que já foram vítimas anteriormente e não fizeram queixa. A sociedade, por sua vez, sempre inibiu a luta das mulheres, levando-as a consentir quaisquer decisões, apesar de haver cada vez mais mulheres a lutarem pelos seus direitos, ainda é visível uma descriminação em relação às mulheres. Devido a isso, as vítimas não reportam o crime, aliado às opiniões da sociedade, muitas vezes está a dependência económica que leva à falta de coragem em assumir o crime.

Atualmente, existem diversas associações que apoiam as vítimas auxiliando-as no recomeço da sua vida, como o caso do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica (NAVVD), em Viseu ou a Associação de proteção à Vítima (APAV), em todo o país. O enfermeiro José Costa aconselha a denúncia “pelos exemplos ultimamente que tem vindo a público, os casos que são esquecidos ou desvalorizados acabam normalmente em tragédias, a partir do primeiro momento em que haja a primeira agressão deve ser participado às autoridades”.

O NAVVD situa-se no centro de Viseu e conta com profissionais das áreas sociais que auxiliam as vítimas de violência doméstica. Como adianta a coordenadora Carla Andrade “fazemos todo o acompanhamento, após a pessoa se dirigir ao centro ou através de uma denúncia. A associação inicia um processo de acompanhamento, que passa inicialmente por uma entrevista, uma avaliação de risco, ou seja, um diagnóstico da situação, em seguida, acionamos os mecanismos que mais se adequam a cada situação. Poderá ser uma situação que por inexistência de medidas judiciais seja necessário um acolhimento temporário ou, caso seja permanente, numa casa abrigo. Caso seja uma situação que já tenha medidas judiciais, como o caso da pulseira eletrónica ou prisão preventiva, a vítima poderá apenas necessitar de apoio social e económico”.

Apesar das diversas linhas de apoio à vítima, esta ainda tem receio em denunciar o crime, sendo as questões financeiras aliadas à dependência emocional as principais razões do sofrimento em silêncio, como confirma a coordenadora do NAVVD “Poderemos começar pela dependência emocional que a vitima nutre pelo agressor, a pessoa que ela escolheu para passar a sua vida, que se supõe ser pro resto da vida, a esperança da mudança torna-se um dos principais pontos que dificultam a denúncia. Temos casos de senhoras com oitenta anos que ao fim de sessenta e poucos anos de maus tratos, e de se manterem todos esses anos, que é uma vida, na esperança que os agressores mudem, entendem que não aguentam mais e pedem apoio nessa altura. Aliado à dependência emocional, temos casos de dependência económica, os bens em comum, tornam-se uma barreira para a libertação deste sofrimento. A dependência económica, principalmente em pessoas da classe alta cujo facto de saírem de casa implicaria perder um estilo de vida que a vítima e os filhos estão habituados, torna-se, também, um impedimento, levando a que muitas vítimas prefiram manterem se num ambiente violento do que perderem um nível de vida a que estão habituados”.

As mortes que ocorreram em Portugal no ano passado, revelam que algumas das vítimas sofriam agressões constantes e devido ao medo acabaram por perder a vida. Por outro lado, a divulgação de diversas campanhas que abordam este assunto, promove o aumento das queixas, sendo possível auxiliar muitas vítimas. Não é possível, contudo, afirmar que o número de agressores cresceu ou diminuiu, na realidade o aumento do número de vítimas comprova que as campanhas de sensibilidade têm vindo a mudar a sociedade, tornando-se mais frequente o número de queixas e de vítimas com coragem. É de salientar que a violência doméstica é um crime público e que qualquer cidadão deve fazer queixa, para que não seja cúmplice com um crime punível.

A desigualdade entre sexos leva, em parte à violência, isto porque os homens são vistos, pela sociedade, como os seres mais fortes, incapazes de serem derrubados. A maioria das mulheres ocupam cargos hierárquicos mais baixos, sendo poucas as que estão presentes no Governo.

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Devido a essa diferença entre géneros tornou-se incansável a luta pelos direitos das mulheres. Aos olhos de muitos cidadãos, as mulheres são apenas objetos e quando ousam desafiar sofrem agressões. Em 2009, foi tornado crime público, contudo, são poucas as queixas provenientes de pessoas externas às agressões, o peso da sociedade impede a penalização destes crimes.

Catarina Gouveia (texto e fotos)

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