“Para o rugby ser considerado violento teria de ser praticado por pessoas violentas”

João Pedro Catulo, tem 45 anos e é o atual treinador da Seleção Nacional Feminina Sevens Sub 18 de rugby. Vive na Lousã e é diretor técnico de um centro de inspeção automóvel. Está ligado ao rugby desde os sete anos e até agora nunca mais o largou. Desde jogador, a capitão, treinador adjunto, treinador principal e selecionador nacional, João Pedro Catulo confessa o porquê de gostar tanto deste desporto. Depois de 28 anos a jogar rugby, ele revele alguns dos melhores momentos que a modalidade lhe trouxe e como começou esta aventura.

Quando começou a jogar e porquê?

João Pedro Catulo Comecei a jogar rugby aos sete anos, influenciado por um primo mais velho que também jogava e que me incentivou a ir ao primeiro treino. Além disso o campo de rugby, naquela altura, era muito próximo da casa dos meus pais, o que facilitou a decisão de ir experimentar a modalidade. Até essa idade eu praticava regularmente judo e natação.

 

Como foi ir à seleção? O que sentiu no seu primeiro jogo?

JPC Eu fui chamado pela primeira vez a uma Seleção Nacional de Rugby com 12 anos – na altura chamava-se Seleção Nacional de Iniciados – e desde então fui sempre convocado para as diferentes seleções de todos os escalões existentes no rugby português. Depois de dois anos na Seleção de Iniciados, seguiu-se a de Juvenis, por um ano, e logo de seguida fui chamado à Seleção de Júniores por três anos – no primeiro ano que joguei pelos juniores, o meu escalão ainda era o dos Juvenis. Nos dois últimos anos na Seleção Nacional Junior fui o seu capitão de equipa. Após isso estive um ano na Seleção Sub 22. Depois de um treino em conjunto entre a Seleção Sub 22 e a Seleção Sénior A, e ainda com 19 anos, tive a minha primeira chamada à seleção principal. Fui concovado pelo Selecionador Nacional, que na altura era o Escoces Andrew Cushing, para um jogo contra a Romenia no campo de honra do Estadio Nacional, no Jamor. Entretanto e também desde os 12 anos, fui também jogador e capitão nas várias Seleções Regionais Centro e Norte/Centro.

Como desde muito cedo comecei a jogar nas seleções mais jovens já estava um pouco habituado e foi com naturalidade, embora com algum nervosismo, que encarei o meu primeiro jogo pela Seleção A de Portugal, mesmo sendo esse um jogo contra a Roménia, uma equipa muito poderosa e bem cotada internacionalmente.

 

Em relação às lesões: teve muitas? Qual foi a mais grave?

JPC Sim, infelizmente tive várias lesões ao longo da minha carreira desportiva. A mais grave foi num jogo entre o Rugby Clube Lousã e o Grupo Dramático Sportivo de Cascais, onde sofri uma rutura dos ligamentos da cervical, o que teoricamente me iria afastar da modalidade para sempre. No entanto, e devido ao amor pelo jogo, após um ano de recuperação, já estava novamente a jogar, mas não mais voltei à alta competição, deixei então de jogar na Seleção Nacional e passei a jogar apenas no meu clube de sempre, o Rugby Clube da Lousã.

 

Equipa Sénior do Rugby Clube da Lousã em 1997/98

 

Como foi lidar com as lesões?

JPC Era complicado, porque eu era um jogador muito empenhado e nunca faltava a um treino, mesmo quando estava lesionado. Sempre fui, desde muito cedo, capitão de equipa nas equipas ou seleções onde jogava, o que me dava ainda mais sentido de dever e responsabilidade. Como sempre treinei muito para conseguir estar bem fisicamente, o treino tornou-se um vício para mim. Quando não podia treinar, notava mudanças no meu humor e senti-a falta de todas aquelas substâncias saudáveis que o treino ajuda a libertar no nosso corpo após o exercício físico.

 

Quais foram as histórias mais engraçadas que teve com os seus colegas?

JPC Ao longo de 28 anos a jogar rugby acabamos por colecionar muitas histórias engraçadas e torna-se difícil destacar umas em relação a outras, até porque a memória já não me ajuda a ser 100% fidedigno em qualquer história que conte (risos). Mas todas as deslocações ou digressões que fazíamos eram recheadas de histórias engraçadas. Uma das enormes vantagens desde desporto é que requer muitos jogadores por equipa, logo ficamos sempre a conhecer muitas pessoas que ficam amigos para a vida toda e que mais tarde nos fazem recordar todos aqueles momentos divertidos que vivemos em conjunto.

Numa digressão a Paris, com a equipa sénior do meu clube, após um jogo com uma equipa local, já no jantar de convívio, a dita 3.ª parte do rugby, fui eleito pela equipa adversário como o “Homem do Jogo”. Como tal teria que cumprir um desejo da minha equipa. Eles desejaram que do restaurante até ao hotel fosse sempre todo nu. Isto claro que acabou por ser muito engraçado. Na entrada do hotel tive que pedir ajuda a duas senhoras, que estavam na entrada, para se colarem a mim, uma à frente e outra atrás, para que pudesse deslocar-me até ao meu quarto sem ser preso (risos).

Numa outra ocasião, numa deslocação a Roma, também com a equipa sénior, ao visitar o Coliseu, reparei que existia uma segunda porta sem fila de pessoas para entrar. Li numa placa que era destinada a grupos em excursão com um guia oficial e acreditado. Dirigi-me à portaria e convenci o porteiro que era um guia oficial português e que tinha um grupo excursionista ao meu encargo, toda a minha equipa. Resultado? Entrámos sem esperar e sem pagar bilhete. Mas durante toda a visita tive que andar à frente da equipa a gesticular e a falar alto com os meus colegas como se soubesse o que dizia em relação a cada uma daquelas paredes, algumas em ruínas, que nos rodeavam no interior do coliseu.

 

Foi capitão em várias seleções. Acha que era um exemplo a seguir?

JPC Julgo que sim. Eu sempre fui muito certinho, muito correto e talvez até demasiado adulto para a idade que tinha – isto até aos 30, após essa idade passei de anjinho a diabinho (risos). Não bebia álcool, nunca fumei e treinava duas vezes por dia – de manhã bem cedo antes de ir para a escola e outra vez ao final do dia. Entre treinos de campo, treinos de corrida e treinos de ginásio, treinava em média 10 vezes ao longo da semana. Sempre fui muito responsável e talvez por isso era sempre escolhido para desempenhar esse papel de líder nas equipas onde jogava.

 

Trabalhava muito para atingir os seus objetivos?

JPC Como já disse antes, eu sempre treinei muito para estar em boa forma física e para poder jogar a um bom nível. No meu clube eu jogava sempre no meu escalão e no escalão etário acima. Com 17 anos, primeiro ano sénior, já era o capitão de equipa, equipa da primeira divisão. Desde os 12 até aos 16 anos eu era sempre o único jogador fora de Lisboa que ficava nos jogadores escolhidos para cada uma das seleções. Sendo eu da província era mais difícil me impor no grupo. Como tal tinha que estar melhor e treinar melhor que qualquer um dos outros jogadores de Lisboa, para que me pudesse salientar pela positiva.

 

Quando deixou de jogar?

JPC Deixei de jogar aos 35 anos, numa altura em que os meus objetivos enquanto jogador e dos meus colegas eram um pouco diferentes dos objetivos da direção do clube e então achei que essa seria a altura para deixar de jogar e começar a fazer outras coisas. Comecei entretanto a jogar ténis, squash e a frequentar diariamente um ginásio. Durante dois anos não voltei a ver rugby. Mais tarde fui convidado para ajudar a treinar os séniores da Escola Agrária de Coimbra, onde ainda joguei por mais 2 épocas.

 

João Catulo com o Prof. Rui Carvoeira

 

Como e quando se tornou treinador da seleção feminina sénior?

JPC Em abril de 2009, após a nomeação do Professor Rui Carvoeira pela Federação Portuguesa de Rugby [FPR] para o cargo de Selecionador Nacional Sénior Feminino, fui convidado, por ele, a ser seu treinador adjunto, cargo que mantive até 2011. Em 2012, 2013 e 2014, após a saída do Prof. Rui Carvoeira da Seleção Feminina, fui convidado pela FPR a ocupar esse lugar.

Em 2014 iniciámos o projeto das Academias Regionais Femininas e criámos também a Seleção Nacional Sub 18 Feminina. Nessa altura, estando eu a trabalhar e a viver na Lousã, deixava de fazer sentido a minha deslocação semanal para Lisboa para treinar a Academia de Lisboa e a Seleção Sénior Feminina, que era composta maioritariamente por jogadoras da região de Lisboa, enquanto que a Academia do Centro e a recém criada Seleção Nacional Sub 18 Feminia, eram compostas maioritariamente por jogadoras da região Centro o que me levou a optar por deixar o cargo de Selecionador Nacional Sénior e a abraçar este novo projecto e a trabalhar em exclusivo com a Seleção Nacional Sub 18 e a Academia Regional Feminina do Centro, deixando a seleção sénior feminina a cargo do atual Selecionador Nacional, João Mirra, que na altura era o treinador da Academia Regional Sul.

 

O primeiro campeonato que teve com essa seleção como foi? O que sentiu?

JPC Todos os campeonatos da Europa onde estive presente, séniores e Sub 18 tiveram sempre um sabor especial. Tenho muito boas recordações de muitos torneios dos Europeus onde participei, seja como treinador adjunto ou treinador principal, seja na Seleção Sénior ou Sub 18. No entanto gostaria de destacar os cinco Europeus (de 2014 a 2018) com a Seleção Nacional Feminina Sub 18, porque obtivemos excelentes resultados, na maioria deles, e porque tive oportunidade de trabalhar e ajudar a “formatar” algumas das atuais melhores jogadoras nacionais, o que me enche de orgulho.

 

O selecionador com uma das seleções Sub 18

 

Como foi trabalhar com as atletas mais novas? É muito diferente?

JPC Sim é bastante diferente. Quando trabalhamos com jogadoras mais novas, com menos experiência na modalidade, temos oportunidade de trabalhar as jogadoras sem “vícios” e podemos fazer um trabalho mais completo. As próprias jogadoras estão mais sensíveis à mudança, à alteração em relação à forma como jogam nos clubes e podemos moldar as jogadoras à imagem do que achamos melhor para a competição.

 

Qual foi o seu melhor momento enquanto jogador?

JPC Tive muitos momentos fantásticos enquanto jogador de rugby, nomeadamente com a Seleção Nacional, mas os momentos que recordo com maior saudade foram quase todos passados com a minha equipa, com o meu clube em torneios de Sevens Internacionais como o Madrid Sevens, Corunha Sevens, Lisboa Sevens, Arcos Sevens, Coimbra Sevens etc. Jogar com o Waisali Serevi [atleta de Fiji] na mesma equipa, onde eu era simultaneamente jogador, capitão e treinador no Madrid Sevens em 2012, e vencer a final de clubes desse fantástico torneio, foi sem dúvida um dos melhores fins de semana enquanto jogador de rugby.

 

João Pedro Catulo com colegas de equipa e com o atleta Waisali Serevi

 

…e enquanto treinador?

JPC Enquanto treinador tenho muitos momentos felizes com as equipas masculinas da Lousã que treinei e com as Seleções Nacionais Femininas, mas gostaria de destacar quatro momentos particularmente felizes: em 2014, no último torneio enquanto Selecionador Nacional Sénior Feminino, em Moscovo, alcançámos o 4.º lugar no torneio. Após termos derrotado a França nos quartos de final da CUP, perdemos contra a Holanda já depois do apito final. Por escassos segundos não conseguimos trazer a medalha de bronze para Portugal.

Outros dois momentos foram em 2015 em Liége (Bélgica) e em 2017 em Vichy (França) os 4º lugares também alcançados no campeonato da Europa de 7s Femininos Sub 18. O outro momento foi em 2016. No decorrer de toda a época com a Seleção Nacional Feminina Sevens Sub 18, ao longo dos 10 estágios de preparação realizados, nos torneios de preparação e no Campeonato Europeu realizado em setembro de 2016, em Vichy (França). Esta foi uma seleção, uma equipa, um grupo de amigas muito especial e que me vai ficar para sempre no coração. Esta equipa, este conjunto de jogadoras, destacou-se por ser uma equipa muito homogénea, recheada de excelentes jogadoras que já trabalhavam comigo, na sua grande maioria há mais de 3 épocas consecutivas e que hoje em dia são algumas das melhores jogadoras nacionais.

 

A equipa que João Catulo considerava a melhor até agora

 

E o pior?

JPC Tive poucos, felizmente. Mas posso dizer que fico triste quando sinto falta de respeito pelo meu trabalho, falta de respeito pelas equipas que treino, seja por parte de jogadores, seja por parte de qualquer outra pessoa. A falta de gratidão, a falta de reconhecimento do esforço e do empenho que coloco em tudo o que faço, de algumas pessoas (poucas felizmente) também é algo que me deixa um pouco triste. Mas o facto de em 2016 no Campeonato da Europa Sevens Sub 18, em França, terem incluído a França e o Canadá (que participavam pela primeira vez no europeu) no nosso grupo, juntamente com a Holanda, impossibilitando-nos assim de poder disputar um dos oito primeiros lugares nas 16 seleções em competição, foi um momento muito triste para mim, pois queria dar um grande resultado àquela equipa que eu considerava a minha melhor equipa de sempre. Apesar de tudo nessa competição ainda conquistámos a taça Bowl (9.º lugar) com excelentes resultados no 2º dia de competição, o que aliviou a minha tristeza nesse Europeu.

 

O que acha que o rugby traz de bom aos jogadores?

JPC Este desporto, para além dos valores que apregoa e que na maior parte das vezes se refletem nas ações de todos os intervenientes na nossa modalidade, tem também uma forte componente de trabalho em equipa, o que é fundamental para ter sucesso nesta modalidade e que nos prepara para a vida profissional, em qualquer empresa nos mais variados setores de atividade. Temos ainda aquela que eu acho uma das maiores qualidades deste desporto, que são as amizades que ficam para toda a vida, com os jogadores que jogaram ao teu lado, os atletas que treinamos ao longo da carreira e também com os adversários com quem jogámos.

 

As pessoas que não conhecem este desporto acham-no muito violento. Concorda com isso?

JPC Não, violento não. É sem dúvida um desporto duro e que requer uma boa forma física e para isso somos obrigados, para diminuir e minimizar as possíveis lesões, a trabalhar regularmente no ginásio para fortalecer o corpo e melhorar a condição física. Para ser considerado violento teria que ser praticado por pessoas violentas e mal-intencionadas, o que não é de todo o caso. Desde cedo aprendemos como nos devemos comportar em campo, com os colegas, com os árbitros e com os nossos adversários.

 

O que acha do rugby feminino em Portugal?

JPC Julgo que em Portugal, neste momento, com algum investimento financeiro, mas acima de tudo com algum investimento humano por parte das pessoas ligadas ao rugby feminino e ao rugby em geral (clubes e Federação) ainda poderíamos acompanhar as restantes seleções Europeias e dar melhores resultados ao rugby Nacional. Não estamos muito longe do que se faz de melhor na Europa, temos jogadoras naturalmente capazes de jogar esta variante mas falta algum dinheiro, mas acima de tudo falta vontade para trabalhar mais e melhor no rugby feminino.

  

Acha que dão a importância merecida ao rugby e toda a gente conhece este desporto?

JPC Não, julgo que no nosso país é pouco divulgado pela comunicação social. Esta modalidade tem muitos atributos, muitas qualidades em detrimento de outras bem mais conhecidas e divulgadas. O rugby deveria fazer parte, desde cedo, das aulas de educação física na escola. O rugby deveria ser um dos principais desportos escolares em Portugal como é em muitos outros países.

 

Porquê este desporto e não outro?

JPC Eu gosto da maioria dos desportos e depois de deixar de jogar rugby, aos 35 anos, pratiquei vários desportos, mas o rugby é realmente “a escola da vida” e tem características únicas, como a amizade que se gera em todos aqueles que a praticaram juntos ou que simplesmente jogaram esta modalidade em “qualquer canto” do mundo.

 

Texto: Sandra Dias

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