“É natural que uma coisa que te provoca emoções, seja algo que queiras repetir”

Quando aos cinco anos o inscreveram no conservatório de música, José Miguel Amaral estava longe de imaginar que a música se tornaria a sua vida. Depois de completar o Curso Complementar de Piano do Conservatório Regional de Música de Viseu “Dr. José de Azeredo Perdigão”, saiu de Viseu para estudar piano numa das mais prestigiadas e conceituadas escolas de Paris. Durante os seis anos que estudou na cidade, obteve o Diplôme Superieur d’Enseignement de Piano pela École Normale de Musique de Paris – Alfred Cortot e completou o Curso Superior de Piano do Conservatório Superior de Música de Paris, na classe do professor Olivier Gardon, obtendo o “1er prix”. Regressou a Portugal e desde então é docente da disciplina de piano e pianista acompanhador no Conservatório de Música de Viseu.

Como surgiu o estudo da música na sua vida?

José Miguel Amaral Iniciei o estudo da música não por vontade própria, porque eu não manifestava nenhum interesse na altura, mas porque os meus pais, aos cinco anos, na sequência da abertura do conservatório aqui em Viseu, resolveram inscrever-me, tal como me podiam ter inscrito noutra atividade qualquer. Por acaso, fui ficando e o gosto foi aparecendo à medida do tempo.

 

O que o fez optar pelo piano?

JMA Também não fui eu que escolhi o piano naturalmente, mas foi-se tornando uma opção clara para mim. Para além disto, não equacionava outra coisa, porque na altura a escola não tinha uma oferta tão diversificada como a que tem actualmente, nem eu tinha uma cultura musical familiar que me permitisse conhecer muito mais coisas. O meu avô tocou saxofone de forma rudimentar, por isso não tinha grandes referências musicais e eu era um menino muito bem comportado, que fazia o que me impingiam e a música foi mais uma dessas coisas.

 

Como surgiu a ideia de ir estudar para Paris?

JMA Para isso é preciso voltar um bocadinho atrás. Após terminar os estudos no Conservatório, e pese embora tivesse vontade e manifestasse interesse em seguir música, inicialmente fui para Direito e ingressei na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estive aí muito pouco tempo, até que, em conjunto com os meus pais, tomei a decisão, muito custosa em termos pessoais e familiares, de sair do curso e passei uma espécie de ano zero em Viseu. Eu sabia que precisava de estudar de uma forma muito séria pois não possuía o nível que eu precisava para ingressar onde acabei por ingressar. Estudar oito horas por dia, todos os dias, para tentar chegar a um nível minimamente aceitável. No final desse ano zero, surgiu a possibilidade de tocar para um professor da École Normale de Musique de Paris, que me aceitou na sua classe. E foi assim que, passado um ano, acabei por ir para Paris. Quando fui para Paris, fui ainda naqueles moldes antigos do emigrante que vai para um país que não tinha a mesma moeda, tinha uma casa para mim, o meu próprio estúdio,… peguei na realidade que tinha aqui e fui para uma coisa totalmente diferente e foi assim que fui parar a Paris sozinho com dezoito anos.

 

Esteve na École Normale de Musique de Paris e no Conservatório de Música de Paris. Como foi a experiência nas duas escolas?

JMA École Normale devo dizer que é uma prova de fogo em termos de resistência psicológica. Foi aí que tomei noção da realidade de onde eu vinha, daquilo que é o ensino da música e daquilo que é a performance num nível europeu e mundial. O sistema da escola era um sistema que punha à prova os alunos… Para tu veres o impacto que isso teve, eu ainda hoje sonho com os meus exames, com a chamada para o palco… Nós éramos chamados para o palco por um número, nem sequer tínhamos nome e o júri que nos ouvia era um júri de professores que não pertencia ao corpo docente da escola, eram professores convidados para garantir uma certa imparcialidade. É um bom princípio, agora o que há de mais frio possível em termos de ambiente de exames estava ali. Havia inclusive uma campainha que ditava quando o júri não queria ouvir mais a nossa prestação, seja porque estávamos a tocar muito mal, seja porque eramos uns génios e não precisavam de ouvir mais. Isto tudo porque na École Normale, como se costuma dizer, é fácil entrar mas é difícil sair com alguma coisa. O sistema francês funciona na base do concurso portanto para saíres duma escola como essa com um diploma precisas de alguma forma ter um prémio no concurso. Há provas eliminatórias, há peças impostas que saem mês e meio antes e que temos de aprender de repente… e eu confesso que cheguei a um ponto que me fartei um bocadinho. Da escola, desse sistema todo e também pelo facto de a École Normale ser uma espécie de «fábrica de dinheiro» que era já mais uma marca de prestígio do que propriamente uma escola de formação.

 

Foi aí que decidiu ingressar no Conservatório de Paris…

JMA A dada altura senti-me descontente e notei que tinha chegado ao fim de um ciclo de ensino e precisava de qualquer coisa que me fizesse renascer, que me fizesse sentir bem comigo próprio e foi nessa sequência que fiz a admissão ao Conservatório de Paris onde estudei com um professor excelente, diametralmente oposto ao meu anterior professor. Mudei para esse novo professor que era um autêntico “animal” como pessoa, mas altamente competente. Eu acho que nunca lhe arranquei uma palavra de apreço em relação ao que eu fiz na aula. Talvez tenha dito «c’était pas mal», ou seja, «bom… foi mais ou menos» isto mesmo depois de eu ter tido algum sucesso nessa escola e ter tido o diploma mais alto da escola. Foi um ciclo de seis anos de estudo, dos dezoito aos vinte e quatro, em que fui crescendo, fui aprimorando coisas e fui sobretudo buscar o que eu queria de cada escola.

 

Com Alexei Grynyuk (à esquerda), Inin Barnatan (ao piano) e Yoshihiko Nakagawa (atrás) em Mimérand, Cernoy-en-Berry, França, durante uma participação num festival de verão.

 

Ainda em Paris, integrou a classe de Música de Câmara do Quator Ysaÿe. Como surgiu esta oportunidade e o que lhe trouxe esta experiência?

JMA Isso foi muito bonito. Foi no Conservatório de Paris e era uma classe que tinha acabado de se iniciar nessa altura. O Quarteto Ysaÿe era, na altura, um quarteto importantíssimo em França. Era uma classe muito livre, em termos de programa e em termos de estrutura curricular, e eu e mais um grupo de colegas fizemos um trio (piano, clarinete e violoncelo) e tínhamos uma aula todas as semanas. Foi uma experiência fantástica porque, pela primeira vez, assim de uma forma mais regular, pude ouvir conselhos de um instrumentista que não é da minha área, na altura era o senhor Miguel da Silva que era da viola de arco, que me dava aulas fascinantes, e sobretudo porque eram pessoas que, pese embora o seu alto rendimento em termos de performance, eram muito mais compreensivos em relação às nossas falhas, às nossas hesitações nas aulas e em concerto do que um professor que está habituado àquela coisa toda da docência.

 

De que forma é que o tempo que esteve em Paris o influenciou?

JMA: Influenciou-me muito… de uma forma muito directa, eu ainda hoje leio em francês porque tenho vontade de continuar a aprimorar o meu francês.

Por outro lado, como eu dizia há bocado, as oito horas de estudo do ano zero também foram as oito horas de estudo em Paris e até mais, portanto eu não fui propriamente alguém que viveu em Paris, fui mais um turista em Paris durante seis anos. Nunca estive propriamente ali durante o dia todo nas ruas. No início eu era extremamente sério e muito aquilo que eu hoje em dia sou em termos de docência, fui também para comigo próprio, fui extremamente severo. Já mais tarde tinha uma exceção: ao domingo era um prazer poder sair e ir ao Centro Georges Pompidou ver a exposição temporária que lá está ou então poder ver as exposições de jovens criadores na arte contemporânea. O meu tempo em Paris permitiu-me contactar com essas coisas.

 

E com pessoas ligadas ao mundo da música…

JMA Sim, contactei com gente em termos de música, nomeadamente piano, que eu nunca esperava ter conhecido na vida. O meu professor tinha muitos contactos e, por isso, os afinadores que iam a minha casa eram os afinadores dos principais teatros e salas de concertos de Paris. Às vezes nós nem sabíamos como é que ele arranjava aquilo… nós tínhamo-los em casa a um preço que ainda hoje eu pergunto como é que eles lá iam! Mas eles gostavam de ir ouvir os estudantes aos nossos próprios estúdios, a nossa casa, gostavam de nos ajudar a fazer melhor. Tive um afinador japonês… era uma comédia só para marcar uma afinação com ele porque ele falava um francês ou inglês rudimentar. Esse afinador foi o primeiro que eu vi que me tirou a temperatura do piano. Tirou a temperatura e fez-me o relatório todo em japonês em que eu só percebi os números. (risos) São coisas assim que marcam.

Mas Paris também me marcou muito enquanto pessoa. Aquela abertura toda… Eu vim um homem completamente diferente. Regressei a Paris algumas vezes e, não sei porquê, quando volto fico um bocado «revoltado» com a nossa tacanhez, com a nossa falta de espírito de abertura…

 

Porque regressou a Portugal?

JMA Eu regressei a Portugal… Quando me contactou pensei um bocadinho nessa pergunta… Na verdade, nunca deixei de sair de Portugal porque eu sempre mantive o cordão umbilical especificamente com o conservatório. Eu fazia concertos aqui todos os anos e, por isso, o meu ano lectivo não terminava em Paris, mas sim aqui. Houve sempre essa relação próxima e resolvi voltar porque achei que estava na altura de terminar um ciclo e porque tenho consciência que não haveria condições para viver da música exclusivamente. Enquanto pianista há milhões, não são milhares, são milhões de pianistas muito melhores do que eu tal como existem milhões de professores muito melhores do que eu. Mas achei que podia ser um bom ponto de partida, voltar para Viseu e de alguma forma fazer aquilo que é o retorno, um ato de gratidão ou como queiramos interpretar, e houve essa abertura por parte da escola e pouco a pouco fui ficando.

 

Quando voltou ingressou na licenciatura em Aveiro?

JMA A estrutura curricular em França é completamente diferente da nossa, o curso de professores é um curso à parte, deve haver duas universidades ou as escolas de música que têm a vertente de ensino integrada, de resto temos de fazer a formação específica de professores. E, quando voltei, tive sérios problemas e acabei por ter de voltar a estudar para… tranquilizar as autoridades de que eu estava devidamente certificado, o que acabou por se verificar. Tive de fazer a licenciatura novamente, eu digo novamente porque na teoria eu já teria duas, uma da École Normale outra do Conservatório de Paris, mas eu não lamento isso. É óbvio que na altura custou bastante em termos de sacrifício pessoal, mas é preciso ver isso na perspectiva enriquecedora, e isso foi o ponto de partida para o facto de eu ainda hoje estar a estudar e ter seguido essa via do enriquecimento.

 

Hoje em dia é docente no Conservatório de Viseu ao lado do professor Jorge Martins, que foi durante vários anos seu professor de piano. Como é que ele influenciou o seu percurso?

JMA: O professor Jorge Martins acompanhou-me desde os meus nove anos. De uma forma complementar ao início, porque não era o meu professor base. A minha professora era Dona Alice Namorado e depois ela dizia – «Vão ali tocar para aquele professor que ele sabe muito» – e lá íamos nós tocar para o senhor professor todos cheios de medo. Posteriormente, por causa da restruturação do ensino da música e de os professores terem formação adequada, acabei por transitar para a classe dele. Ele foi sempre uma pessoa que me desafiou a seguir música. Numa fase muito avançada das coisas quando eu já estava em Direito, lá em casa parecia que ele tinha sido, um bocado à moda do Clube dos Poetas Mortos, o responsável por alguma desgraça. Mas eu nunca cortei o cordão umbilical com ele também na altura em que estava em Paris e ele ia muitas vezes à cidade.

 

Como foi passar de aluno a colega?

JMA A relação professor-aluno digamos que não passou, continua. Isso é uma coisa que não desaparece. A reverência não deve ter idade, por isso eu continuo a tratá-lo por você pesa embora poderíamos tratar-nos por tu desde há décadas, mas são coisas que não mudam.

A ensaiar no Conservatório Regional de Música de Viseu “Dr. José de Azeredo Perdigão”, onde é actualmente professor.

 

Ao longo dos anos participou em diversas masterclasses e concursos internacionais, ganhando alguns prémios. Quais as participações que mais o marcaram e porquê?

JMA As que marcam mais não têm de ser necessariamente aquelas em que nós tivemos sucesso. Houve uma participação num concurso internacional em Marrocos que foi fantástica enquanto experiência de vida. Andámos entre três cidades, mas em vez de fazermos apenas aquele turismo de visitar as cidades, foi fazer isso tudo a tocar piano, no ambiente concurso. Mas o concurso que me marcou mais foi o concurso Flame, em Paris, onde eu arrecadei um prémio. Depois de uma fase complicada, de ter deixado a École Normale e ter ingressado no Conservatório de Paris, foi a confirmação daquilo que eu tinha vindo a fazer como trabalho e que eu comecei a desenvolver com o novo professor que tive, o Olivier Gardon. Foi aí que eu disse: «Ok, é isto. Afinal ainda tocas qualquer coisa». Era um concurso importante no Centro Cultural Calouste Gulbenkian em Paris e isso marcou-me pela positiva.

 

Ainda se sente nervoso antes de tocar?

JMA Se eu lhe disser que ainda hoje, quando vou tocar, nunca sei se vou fazer uma autêntica desgraça ou algo genial não lhe estou a mentir. Está muita coisa para trás, mas eu acho que é sempre imprevisível a forma que vamos tocar e portanto tudo pode acontecer. O banco pode partir, pode-te dar qualquer coisa,… e sobretudo há sempre uma falta de confiança que te pode atacar em qualquer altura. Ou então sentes-te um génio, e portanto, de repente estás a planar. São sensações que alternam…

 

Sei que para além de professor de piano é também pianista acompanhador no conservatório…

JMA Eu quando comecei a dar aulas não comecei a ser pianista acompanhador, fui-me incorporando nessa outra tarefa pouco a pouco. Comecei pelos sopros, depois passei para aqui para acolá e, hoje em dia, o meu horário virou completamente ao contrário e sou mais acompanhador do que professor de piano. Mas é bom porque continuo a tocar e sinto-me de alguma forma a evoluir, mas é muito mais desafiante naquilo que nós podemos dar aos alunos. Eu consigo explicar muito melhor aos alunos nos ensaios o quanto eu gosto da música porque é mais livre, não é uma aula e eu não tenho de o fazer tocar ao fim daquilo. Estamos a aprimorar, estamos a cuidar de detalhes e eu conto muito mais histórias, falo muito mais arquitetura musical do que numa aula de piano propriamente dita.

A acompanhar uma aluna do Conservatório Regional de Música de Viseu “Dr. José de Azeredo Perdigão”.

 

O que o faz gostar tanto de música?

JMA Ainda há pouco tempo, depois de um ensaio, eu estava a demonstrar qualquer coisa e eu fixei a aluna e disse: «Vê este estado de espírito. Olha para nós»… Isto são sensações que não existem noutro domínio, julgo eu, não é só na música, mas na arte em geral. E nós temos acesso a coisas completamente inenarráveis,… são emoções muito fortes. A oscilação e a alternância de estado de espírito são uma coisa fantástica… Qualquer bom músico, provavelmente será um bom ator, estou a falar em termos de intérprete, porque às vezes temos de saltar de uma coisa para a outra muito repentinamente e de uma maneira convincente também. Mas a verdade é que está lá tudo, tudo aquilo que foi escrito em termos de literatura também está no piano e na música em geral. Quando lês um livro também te emocionas. É natural que uma coisa que te provoque emoções seja uma coisa que tu queres repetir… Porquê…? Porque o amor é assim… Uma pessoa quando se casa quer repetir aquilo por muitos anos. E fazer disso o nosso trabalho é fantástico não é…? Poderes dar o corpo à emoção assim todos os dias… Não é que isso aconteça todos os dias, porque em termos da docência ou ensaios as coisas não são assim tão poéticas quanto eu estou a relatar, mas acontece esporadicamente um momento mais forte, um momento que nos diz: «É mesmo isto». Mas eu não me imagino a fazer outra coisa, é o que eu costumo dizer. Não sei se sou muito bom ou muito mau, faço outras coisas muito bem, mas eu não me imagino a fazer outra coisa.

 

Texto: Rafaela Sousa

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