“Vivemos numa sociedade de surdos, em que toda a gente quer falar, mas ninguém é ouvido, nem ouve”

Bernardo Almeida, natural de Viseu, tem 21 anos e estuda na Universidade de Aveiro. Tem uma licenciatura em Biotecnologia e está, atualmente, num mestrado em Biotecnologia Alimentar. Começou a fazer teatro aos 10 anos, no Clube Celta, em Viseu. O Clube estava à procura de um narrador para uma peça e o Bernardo já tinha a fama, na escola primária, de ler a cantar e acabou por ser o escolhido para o papel. Na passagem para o ensino secundário, integrou-se num projeto do Teatro Viriato, onde teve a oportunidade de trabalhar com dois nomes bastante conhecidos por Viseu: Graeme Pulleyn, encenador e ator independente, e Jorge Fraga, professor e também encenador. Mas a verdadeira aventura e aprendizagem aconteceu quando o Bernardo foi para a universidade e entrou no GrETUA (Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro), onde está já há 4 anos e onde diz que começou a sentir o teatro de uma forma completamente diferente.

Hoje em dia o poder da representação em Portugal é muito pouco, no entanto, existem muitas pessoas com talento, mas sem visibilidade, o que as deixa apenas com a experiência. Qual é a sua opinião em relação a isso?

Bernardo Almeida Comecçou por tocar num grande problema nesta área hoje em dia, algo que visto deste lado artista, tem duas faces. Primeiro, em relação à visibilidade dos artistas: hoje em dia para seres um artista reconhecido tens de te vender um pouco às coisas que, na minha opinião, têm fraca qualidade, mas vendem, como é o exemplo das novelas. As novelas são um exemplo claro de fraca qualidade de realização, interpretação e até de escrita. Vendo do ponto de vista técnico, é horrível fazer e ver aquilo. No entanto, se quiseres ter o teu nome na boca dos portugueses, vais acabar por te obrigar a fazê-lo. Por outro lado, coisas como teatro ou mesmo o cinema português, estão um pouco esquecidas na mente da nossa população, pelo menos da mais velha ou até da dos nossos pais. Isto é horrível para nós, porque quando aprendes a fazer algo bom e bem, não vais querer meter-te em projetos que te tirem esse sentimento. Basicamente, numa mão acabamos por ter atores incríveis, mas que como não se querem sujeitar a coisas péssimas, não vão ter visibilidade. Na outra mão temos atores horríveis, que acabam por ter imensa “fama” apenas pela cara laroca, que vende, mas que nem sabem o que é fazer boa representação. Este é o primeiro problema.

O segundo problema, que tem muito a ver também com a tal questão do que está esquecido na mente da nossa população, relaciona-se com os “criadores” de arte do nosso país, ou seja, os homens e mulheres que estão à frente de companhias de cultura, mas que são o tipo de pessoa que apenas se conformou com a frase “as pessoas já não gostam de ir ao teatro” e estão sentadas no seu sofá, apenas a queixarem-se disso e a coçar a barriga pelo trabalho que já fizeram. A verdade não é o facto de que as pessoas já não gostam de vir ao teatro, mas sim que estes mesmos criadores deixaram de tentar chamar o interesse das pessoas para irem ao teatro. Não querem tentar mudar os seus métodos de publicidade, digamos assim, para o público que existe agora, que é a camada jovem, e que realmente pode trazer uma revolução na cultura portuguesa. Os criadores conformaram-se com o pensamento de que esta camada não entende a cultura. O que eu quero dizer é que esta questão da visibilidade não está muitas vezes só, e maioritariamente, na culpa do público, mas também nas pessoas a frente das companhias, que não se querem dar ao trabalho de voltar a interessar o público para vir aos teatros.

 

Como diz Ruy de Carvalho, a cultura é a arca do tesouro de um povo. Acha que nos dias de hoje existem oportunidades suficientes para os jovens que querem seguir esta carreira?

BA Existir, existem. Há três ou quatro escolas em Portugal que profissionalizam pessoas nesta área. No entanto, não existem grandes saídas. Eu conheço imensa gente sem cursos que vingam muito mais nesta área do que pessoas com cursos, porque hoje em dia o que conta nem sempre é a experiência e, por isso, acabamos por ter tanta coisa de fraca qualidade.

 

Tem planos futuros ligados ao teatro?

BA Esta pergunta assusta-me um pouco, porque toca no ponto que sempre me fragilizou, que são os meus sonhos. Desde miúdo sempre sonhei em ser algo de genial, de diferente e impactante. Sempre quis sentir que fazia a diferença, acho que é um pouco o que todos queremos. Foi isso que eu encontrei no teatro: a capacidade de levar ao impacto, de fazer as pessoas sentirem algo e saírem do teatro com algo diferente. Então foi também assim que decidi que esta seria, um dia, a minha profissão e a minha vida. Tenho grandes planos para isto, grandes expectativas. Apesar de estar a tirar um mestrado em Biotecnologia Alimentar espero que, mal acabe, possa ir fazer as provas para entrar nas melhores escolas de drama do mundo, ou em Londres ou nos Estados Unidos, porque tentar tirar algo em Portugal é o equivalente a não tirar nada. Sinto que ainda tenho tanto que aprender e que sou ignorante em tanta coisa, como na escrita, na simbologia (algo incrivelmente importante nesta área) ou na própria interpretação de textos. Não quero isso. Quero poder olhar para os textos e sentir tudo o que lá está e ter o conhecimento para entender tudo o que está escrito entre as linhas. Quero aprender com os melhores. Aprender a sentir mais, aprender a movimentar-me melhor.

O meu objetivo não é ser medíocre, nem é ser um bom ator, é ser um excelente ator, é ser extraordinário. Estou pronto para arriscar o que quer que seja e dar o que precise de dar para isto acontecer. Quero ter a certeza de que vou tocar as pessoas quando forem ver peças ou filmes, da mesma forma que eu me sinto tocado quando vejo algum filme incrível. Mas isto é algo assustador, no sentido em que todos sabemos como o mundo das artes é o inconstante que é. Ter sonhos nesta área é como estares previamente a escolher hipotecar o teu futuro, de certa forma. É um jogo onde seres o melhor nem sempre basta: tens de ser genial e tens de fazer os outros verem a tua genialidade, com o “suor e lágrimas”. Nunca podes parar de lutar. É dolorosamente bom, no entanto (risos).

Fale-me sobre esta fotografia.

BA Esta personagem é extremamente pessoal para mim, não só pelo sucesso que foi e o impacto que teve, mas principalmente pelo que significou para mim, pelo que me ensinou e também pelo trabalho todo que tive para chegar até ele. Este é o Emílio, Mil para os amigos. Foi a primeira vez que chorei imenso (e ainda choro) ao deixar de fazer uma personagem, porque é como dizeres adeus a alguém que faz parte de ti. É um “puto, como os outros”, com capacidades promissoras, mas concluiu que essa vida é algo que não queria, porque só significa falhanços, e acaba por largar tudo e levar a vida pela heroína. É das pessoas mais fortes que já conheci, por ter uma “coragem acima da média” em conseguir escolher o que quer fazer na sua vida, mesmo que isso muitas vezes não seja visto como o melhor. Para esta personagem, tive de caminhar um percurso um pouco duro, desde falar com várias pessoas que já estiveram ou ainda estavam metidas no vício das drogas, até passar dois dias a vestir-me de mendigo e a pedir dinheiro pelas ruas de Aveiro. Toda esta experiência foi teve tanto assustadora como de enriquecedora, porque me fez ver imensa coisa de outras formas, principalmente como nós excluímos certas pessoas da sociedade e o nojo que muitos de nós mostramos em relação a essas mesmas pessoas. Foi a primeira vez que senti o que é ser a voz de pessoas que não são ouvidas, que consegui perceber o poder do teatro. É uma sensação magnifica. Esta personagem levou-me ao limite em vários aspetos, mas principalmente a nível emocional. Foi lindo, apaixonei-me por ele e tenho saudades dele todos os dias.

 

Os artistas no geral têm uma capacidade criativa diferente do resto das pessoas e, para criarem, inspiram-se em algo ou alguém. Quem ou o que é que o inspira?

BA Isto vai parecer um pouco piroso, mas tudo no geral me inspira para isto. O comportamento humano é a coisa mais enigmática de sempre. A nossa complexidade, a forma como nós conseguimos fazer coisas tão bonitas e ao mesmo tempo tão tristes é impressionante. Falando mais dentro do campo, então existem dois ou três casos que me dão imensa inspiração para continuar nisto. Um deles realça-se acima de qualquer outro, o do Heath Ledger. Sei que o seu suicídio pode tornar esta frase um pouco assustadora, mas a dedicação que este homem mostrou em relação à arte é das coisas mais inspiradoras para mim. De forma a conseguir alcançar a loucura, ele trancou-se dentro de um quarto de hotel, para estuda-la e percebe-la. O facto de ele ter de fazer isso tudo para conseguir fazer as pessoas sentirem essa mesma loucura… arriscar a sua sanidade pela arte, sei que isto pode parecer algo duvidoso e extremo, mas é neste tipo de riscos que muitas vezes está a diferença entre os grandes artistas e os médios. É o que nós damos de nós mesmos pela arte, é andar sempre a roçar nos limites e a testá-los, fazendo coisas incríveis.

 

Dizem que o maior medo do ser humano é falar em publico. O segundo é o medo da morte. Isso quer dizer que temos mais medo de apresentar algo para um publico grande do que temos de morrer. Que nervosismo sente antes das atuações?

BA É engraçado, eu nunca me senti nervoso antes de uma peça. Apenas durante, naqueles cinco segundos antes de ser eu falar. Foi uma das grandes razões porque sempre amei fazer teatro, porque nunca me senti nervoso antes de entrar em palco e falar para as pessoas, apenas feliz e maravilhado. Isto acontece também porque sei que vou ser ouvido, o que não é algo que me assusta, mas sim que me motiva. Hoje em dia vivemos numa sociedade de surdos, em que toda a gente quer falar, mas ninguém é ouvido, nem ninguém ouve. Menos ali. Entrar em palco é uma descarga de adrenalina, pelo ato de coragem que vou acabar por fazer. Acho que nervoso mesmo só me senti uma vez, porque achei que não ia conseguir sentir o que necessitava e, isso sim, era horrível e iria estragar o espetáculo. Já cheguei a estragar o espetáculo por nervosismo, mas apenas por esse nervosismo ter aparecido a meio de uma cena que estava a correr mal. Aí está o complicado, porque tu não podes ser tu, não podes largar a personagem e pensar como ti próprio. Isso é que é um exercício difícil.

 

O que faz do teatro um lugar tão especial?

BA Penso que, no fundo, o teatro e as representações demonstram muito o desejo primordial do ser humano: sentir, porque é isso que nós fazemos. Fazemos as pessoas sentirem muitas vezes coisas que nem elas sabem que podem sentir. Acabamos por ser as vozes das pessoas que não podem falar por si mesmas ou que, de outra forma, ninguém as ouviria. O meu encenador disse-me algo uma vez que nunca mais esqueci: chamou-nos “prostitutos de emoções”. Acho que isso define perfeitamente o que nós fazemos. Nós prostituímos e vendemos emoções para que as pessoas as vão sentir, para que as pessoas riam, chorem, se assustem ou enraiveçam, porque na realidade é isso que todos queremos sentir. Foi por isso mesmo que eu próprio me apaixonei, não só por fazer o outro sentir, mas também em eu próprio aprender a magia de descobrir sentimentos que nunca na vida pensei ter, estudar muitos outros que já sabia que tinha e usá- los para dar voz a outras peles, a outras pessoas. Odeio quando dizem que teatro é fingimento. É mentira. Quando realmente estás a fazer algo bom, não estás a fingir um sentimento, estás mesmo a senti-lo, estás a sofrer e estás a viver como se fosses aquela pessoa. Isso é algo aterrador, mas bonito ao mesmo tempo. E é essa a magia desta arte.

 

Texto: Andrea Gonçalves

Imagens: DR

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