O vinho é um ser vivo, nasce açúcar, transforma-se em álcool e passa a ácido acético”

Rui Moura Alves é um reconhecido enólogo e vinagreiro da zona da Bairrada, vencedor de Enólogo do ano, em 2001, para a Revista de Vinhos. Num cantinho do distrito de Aveiro, na Rua do Comércio em Sangalhos, vila histórica no centro da região da Bairrada, conhecida pelo ciclismo, basquetebol e, claro, pelo vinho, encontra-se uma pequena porta discreta da Soanálise, laboratório de análise de vinho do enólogo Rui Moura Alves. Por trás dessa pequena sala cheia de tubos, garrafas e material de laboratório abre-se um mundo fantástico difícil de adivinhar para quem passa pela rua. Existe uma vinagreira, a que produz o melhor vinagre natural de vinho de Portugal, o vinagre Moura Alves, vencedor, em 2017, do Great Taste e, em 2016 e 2017, do prémio O Melhor dos Melhores no Concurso Nacional de Vinagres de Vinho e Outros. Este último voltou a ser ganho em 2018 e foi entregue no dia 4 de junho na Feira Nacional de Agricultura, em Santarém. A vinagreira alberga várias pipas de carvalho, onde o vinho, durante 10 anos, se vai transformando em vinagre.

 

O Rui é uma pessoa reconhecida nacionalmente no mundo dos vinhos. Como explica a sua carreira até entrar no mundo do vinagre?

Rui Moura Alves Fui enólogo de diversas caves, estive na comissão vitivinícola da Bairrada. Toda a minha vida é ligada ao vinho, isto já vem de criança, altura em que toda a gente produzia para consumo próprio. E ainda sou o enólogo responsável de muitos produtores. Na Soanálise passam 4 ou 5 mil amostras de vinho, não só da Bairrada como de todo o país.

 

Foi enólogo em que caves?

RMA Na Quinta das Bageiras, que ainda sou, Sidónio de Sousa, Caves S.João, entre outras… Entretanto abri a Soanálise e fui administrador das caves do Freixo. Antes disso trabalhei nas antigas caves Imperio.

 

Pode explicar o que é a Soanálise?

RMA É um laboratório de analises, que dá assistência aos produtores e caves da região. Como já disse passam 4 mil amostras de vinho por ano por aqui. É uma maneira de ajudar e tentar manter a cultura de haver produtores como antigamente, que fazem o seu próprio vinho e não de ser tudo manufaturado.

 

Qual é o principal problema desse vinho manufaturado?

RMA Há uma tendência para fazer vinho para consumo imediato e eu sou absolutamente contra. Para mim um vinho é um produto natural e eu como sou também um consumidor, estou na obrigação de fazer um produto natural, eu não estabilizo, não colo, não filtro, pois ao fazermos isso estamos a tirar as bases fundamentais ao vinho. Não é possível fazer um vinho em Setembro e vendê-lo logo em janeiro, mas o consumismo agora é que manda, embora ainda haja quem faça o correto. Um vinho bairradino só deve ser comercializado 4 a 5 anos depois de ser produzido.

 

A Soanálise é um pequeno negocio, que mantém em paralelo com o vinagre. Como consegue conciliar ambos?

RMA Somos uma equipa de quatro: eu, a funcionaria da Soanálise, a minha mulher que dá uma ajuda e a minha filha também tirou o curso de Enologia, em Bragança, e que também faz parte da equipa da Soanálise. Isto contagiou-se lá em casa, espero que mais tarde também chegue aos meus netos”.

 

Então está garantido o futuro do Vinagre Moura Alves?

RMA Sim (risos), a minha filha tratará de manter a herança.

 

Como começou o interesse no mundo do vinagre?

RMA Quando estive na estação vitivinícola, trabalhava lá um homem, o engenheiro Pereira, que andava sempre a fazer um bocadinho de vinagre lá no laboratório, e aquilo despertou a minha atenção. Na altura, até a Junta Nacional de Vinho, hoje IVV-Instituto da Vinha e da Vinho, com o resto das amostras que passava lá para o controle de qualidade fazia vinagre para os funcionários. Hoje com a ASAE mandavam logo fechar isso tudo.

 

Pelo facto de deter uma vinagreira pequena, quase pessoal, a ASAE representa um problema?

RMA Eu tenho tudo legalizado, mas queria expandir a vinagreira, porque tenho espaço lá em casa para o fazer. No entanto, segundo as leis, tenho que ter espaço para entrar um camião e eu não quero um camião lá em casa. Mas isto foi uma cultura que se perdeu, todos os produtores de vinho tinham o seu barril, ao fundo da adega de vinho a azedar para criar vinagre, para consumo próprio, claro, em pequenas quantidades. Foi aí que eu fui buscar essa cultura. A é culpa da ASAE, que torna muito complicado ter o tal barril ao fundo da adega.

Então e como se faz o melhor vinagre de Portugal?

RMA Um vinagre consiste no azedar do vinho, o vinho não pode ser defeituoso, tem que estar num local com oscilação de temperatura para que as bactérias acéticas funcionem, depois tem de estar 10 anos numa barrica, sem ser mexido, porque cada ano na barrica representa um grau de álcool a ser transformado num grau de acido acético.

 

Parece simples, mas 10 anos é muito tempo. Há quem faça batota?

RMA Em Portugal a lei permite, por isso são legais, mas a maior parte dos vinagres são feitos com um bocado de vinho, água e ácido acético. Basta meia hora e estão feitos, ou seja, não é natural.

 

Sendo uma pessoa tão respeitada no mundo dos vinhos, qual a razão de se dedicar ao vinagre?

RMA Na altura fui muito criticado, diziam que um enólogo como eu a fazer vinagre não lembra a ninguém, porque um enólogo faz vinho. Mas eu cá tinha a minha ideia. Houve um amigo meu, que na altura escreveu e publicou uma dessas criticas e recentemente ligou-me a dizer: “Olha lá, como é que tu fazes o vinagre?” Eu respondi:  “Deixo azedar o vinho”, enquanto me ria por dentro.

 

Alguma vez pensou em fazer alguma mudança no vinagre de maneira a demorar menos tempo a puder ser comercializado?

RMA A minha ideia é nunca mudar a imagem e a qualidade do vinagre, mantendo a estrutura, ou seja, estas 4 pessoas e, talvez, mais tarde, o meu neto.

 

Conseguiu chegar logo ao produto final ou demorou muito até o vinagre ficar como queria?

RMA Só 12 anos depois da ideia e de muitas experiências é que começou a ser comercializado. Fiz experiências com várias castas, e cheguei à conclusão que as castas não têm influência nenhuma. O vinho é um ser vivo, nasce açúcar transforma-se em álcool e do álcool para ácido acético. É preciso parar quando chegar a vinagre, senão transforma-se em água deixa cair todas as substâncias.

A concorrência é maioritariamente estrangeira, principalmente de Itália, com os balsâmicos, correto?

RMA Fui à Itália, duas vezes, para perceber a cultura deles e um vinagre numa garrafa de 25cl cá é vendido mais ao menos a 22 euros, em lojas gourmet. Lá é vendido a 677 euros cada garrafa. Espero um dia também conseguir vender por esse preço (risos).

 

Qual a capacidade das garrafas de vinagre têm em Portugal?

RMA Temos a garrafa de spray de 10cl e as de 25cl e a de meio litro.

 

O produto é colocado a venda onde?

RMA Está em diversos restaurantes, mas principalmente em lojas de Gourmet espalhadas por todo o país e para grandes superfícies como o El Corte Inglês, também para ser colocado nos locais de gourmet.

 

A vinagreira é pequena e é um negócio familiar daí não ser um produto produzido em grande quantidade?

RMA Saem cerca de 1500 litros por ano, mas já para China, Canada, França, onde, sem fazer publicidade, dizem que o rótulo é muito bonito. Há uns tempos recebi um email de Hong Kong a encomendar mais de 50 contentores de vinagre, era impossível conseguir tanto vinagre (risos). É um negocio familiar e a vinagreira é pequena, sem máquinas, tudo feito mão de obra humana.

 

Conte-nos o que sentiu ao ganhar tantos prémios.

RMA Ganhámos o prémio “o Melhor dos Melhores”, em 2016 e 2017, e ganhámos outra vez este ano. Agora estivemos na Feira Nacional da Agricultura, porque o vencedor tem direito a um stand de graça. Tivemos duas estrelas, e até três, num concurso britânico, o Grand Taste, no ano passado.

Costumam apostar nas feiras?

RMA Já tivemos stand em varias feiras, como uma que se realiza no Campo Pequeno, outro na feira de agricultura de Braga e em feiras da zona, como a feira do velódromo em Sangalhos, ExpoBairrada ou a Expofacic. Nos tempos das caves tínhamos sempre na feira do Vinho e da Vinha, em Anadia. Ultimamente temos sempre na Feira Nacional de Agricultura, devido ao prémio, e é a que nos compensa mais.

 

Nesse tipo de feiras procura-se mais os contactos para fornecer a lojas ou para o contacto e venda direta?

RMA Procuram-se essencialmente contactos, pois ganham-se clientes que querem vender o vinagre nas suas lojas, de gourmet, principalmente, mas também vendemos a pessoas que provam e querem levar para casa. Inclusive alguns políticos que vão lá visitar a Feira, como o ministro da Agricultura, ou o Presidente da Republica. Há muitas personalidades que me alegra saber que consumem o nosso vinagre.

 

Principalmente em lojas de Gourmet e onde mais?

RMA Está em diversos restaurantes, mas principalmente em lojas de Gourmet espalhadas por todo o país e em grandes superfícies como o El Corte Inglês. Alguns clientes mais fiéis já nos contactam diretamente e amigos também. Não temos vendedores oficiais, não é? Mas vários conhecidos às vezes falam, é o passa a palavra.

 

É o único vinagre natural em Portugal?

RMA Já existem mais dois vinagres naturais em Portugal, o da Quinta das Bageiras e do Paulo, do Rei dos Leitões, ambos de produtores meus conhecidos. Fico feliz por esta cultura voltar.

 

Sei que é um amante de coleções, que mais nos pode dizer acerca disso?

RMA Tenho todas as que há em Portugal, desde 1972, são 763 garrafas até ao momento e nenhuma é igual. É intocável. Algumas valem muito, mas são para ficar juntas e continuar a colecionar as que ai virão. Já que fala em coleções tenho todas as moedas, escudos, de todos os anos. Punha os meus filhos a contar as moedas e se encontrassem a do ano que queria dava-lhes outra moedita.

 

Já pensou escrever um livro?

RMA Já, sobre os benefícios do vinagre na saúde e algumas histórias e curiosidades minhas. Ainda não está escrito, mas já tenho a capa e a primeira pagina.

 

Não se importa de lhe terem chamado teimoso agora que o sucesso está demonstrado sendo pioneiro em Portugal?

RMA Fico feliz por ter mantido bem vivo um património cultural, vitícola e vinícola.

 

Texto: Alexandre Ribeiro

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