Rancho Folclórico e Etnográfico de Vale de Açores. 45 anos a preservar os costumes de uma região

Fundado em 1978, o Rancho Folclórico e Etnográfico de Vale de Açores tem sido a maior exportação cultural saída do concelho de Mortágua nas últimas décadas, rivalizado apenas pelas equipas de futebol locais e percorrendo de lés a lés o país. Entre os vários objetivos da instituição, destaca-se o desejo de preservar as tradições e os costumes dos seus antepassados.

Reportagem de João Gomes

Localizado na aldeia de Vale de Açores, no município de Mortágua, o Rancho Folclórico e Etnográfico foi fundado a 28 de janeiro de 1978 por José Castro, Pedro Oliveira, Celso Mendes e Jorge Portugal, devido ao descontentamento pela falta de ensaios no rancho ao qual pertenciam anteriormente, na aldeia vizinha de Caparrosinha. A angariação de membros foi feita inicialmente com convites feitos porta a porta, e mais tarde, por convites diretos.

Para Manuela Silva, cantora e dançarina do grupo, o convívio é tão importante como a representação do seu concelho. “Para mim, são os bocados que se passam e a convivência uns com os outros. A nível da comunidade não sei bem, eleva-se o nome de Mortágua e de Vale de Açores quando vamos fazer as atuações.” Manuela Silva já vive o rancho há largos anos. Membro desde 1990, constatou a mudança ao longo do tempo, “Andei antes, saí e voltei em 90/91. É muita diferença, não tem nada que ver a nível de trajes, danças, de tudo!”

Durante os cerca de 33 anos com o rancho, Manuela Silva teve o seu filho, João Pereira, que também faz parte do grupo como acordeonista. Para ele, o rancho faz parte da sua vida ainda antes do nascimento, “Nasci cá, quase!”, ri- se, “A minha mãe já cá andava quando estava grávida de mim e nunca deixou de andar. E pronto, sempre fiz parte desta família. Mesmo quando era bebé a minha avó ia comigo para tomar conta de mim nas atuações.”

Para João Pereira, os pontos mais importantes do Rancho vão de encontro com os enumerados pela sua mãe, “É importante para passar o tempo com pessoas que gosto, para levar a cultura, para não perder as tradições e também ajuda a desanuviar a cabeça.”

José Augusto Rodrigues, João Pereira e Manuela Silva

“O que sinto é alegria!”

O Rancho Folclórico e Etnográfico de Vale de Açores é responsável também pela organização de alguns eventos, tais como a Festa Nacional de Folclore, em Vale de Açores, e a Gala Internacional de Folclore, na Praça do Município em Mortágua. Para além destas duas festividades organizadas anualmente, têm o costume de cantar as janeiras de porta em porta pela aldeia de Vale de Açores. No passado organizavam a Feira de Usos e Costumes de Outrora, que pretendia mostrar ao público em geral como eram feitas as feiras no passado, com produtos e pratos típicos de Mortágua, e animação proporcionada pelo Rancho de Vale de Açores e outros conjuntos convidados.

A nível das atuações, o Rancho Folclórico e Etnográfico de Vale de Açores já percorreu grande parte do país, inclusive já visitou outros países europeus. José Augusto Rodrigues, dançarino e atual presidente do conjunto, enumera os países visitados pelo Rancho: “Espanha, França, Luxemburgo, Polónia, Sérvia, Croácia, Itália e acho que é só. Fomos várias vezes a Espanha, várias vezes ao Luxemburgo.”

Na perspetiva de José Augusto Rodrigues, o mais importante é o orgulho sentido pela representação e preservação da história. “É uma das maneiras que nós temos de preservar e ao mesmo tempo divulgar as tradições da nossa terra e do nosso concelho. Sabemos que somos bem vistos quando representamos Mortágua quer não só no país, mas também lá fora.” O atual presidente foi convidado a juntar- se ao grupo em 2003, após o falecimento de um dos antigos membros do grupo. Sobre as subidas ao palco, Manuela Silva diz não saber explicar. “O que sinto é alegria!” Já João Pereira recorda com orgulho a primeira subida ao palco como instrumentista. “Para mim foi o primeiro festival nacional de folclore nosso que fiz enquanto tocador. Estava nervoso, mas correu bem, e ter feito isso, depois de muitos anos no grupo foi excelente.”

O traje é tão importante como a música

Com a construção do edifício que serve ainda hoje de sede para a instituição, o Rancho avançou para a conclusão de um processo de mudança dos trajes e das modas, que culminou nas entradas para a Federação de Folclore Português (FFP) e na Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego, em 1994, sendo atualmente um de 418 grupos da FFP. Recebeu a medalha de ouro de Mérito Municipal, entregue pelo Município de Mortágua em 2002. Quatro anos depois, foram os anfitriões da Assembleia Geral da Fundação do Folclore Português.

Grupo no Santuário da Nossa Senhora do Chão de Calvos

Os trajes são baseados em cenas do quotidiano dos seus antepassados. Retratam lavradores; vendedores de gado; noivos; mordomos de romarias e da população que a frequentava; trajes de domingo, para usar no dia de descanso e de assistir à missa; tremoceiras; leiteiras; galinheiras; barqueiros; lavadeiras e resineiras. Estes trajes, todos com uma grande fidelidade aos da época, representam também as diferenças sociais da época, como por exemplo nos trajes de lavradores remediados, que correspondiam a uma classe social mais baixa e lavradores abastados, que por norma tinham mais terras e animais em sua posse. Estes trajes também refletem o passado rural do concelho de Mortágua, que ainda hoje permanece uma área dependente da agricultura nas aldeias mais isoladas do concelho.

“O maior desafio nos dias de hoje é a menor disponibilidade de tempo”

Para José Augusto Rodrigues, o rancho enfrenta alguns desafios para o futuro. “O maior desafio nos dias de hoje é a menor disponibilidade de tempo que as pessoas têm. Hoje temos muita gente a trabalhar por turnos, e a vida é completamente diferente do que era há dez ou quinze anos atrás.” José Augusto Rodrigues trabalha como professor de geografia para os ensinos básico e secundário, e João Pereira estuda Química na Universidade de Coimbra. Apesar da sua vida académica, confessa que só sai do rancho se não tiver outra alternativa, “Enquanto possível andarei cá, porque gosto de cá andar e não gostaria que se perdesse isto.”

Outra dificuldade apontada por José Augusto Rodrigues é a falta de apoios. Num orçamento de estado onde apenas 0,43% são orientados para a cultura, o presidente do Rancho Folclórico e Etnográfico de Vale de Açores sente que a cultura tradicional é ignorada, “A nível dos governos ou apoios eu acho que não olham para a cultura tradicional como deviam olhar. Os subsídios e os apoios são praticamente inexistentes.”

“Às vezes é um bando de tolos que andam ali em cima do palco”

Ainda há pessoas que têm um estigma contra esta forma de cultura. O que já chegou ao gozo, como conta João Pereira. “Já ouvi coisas por andar no rancho, como por exemplo gozarem comigo, há pessoas que é mesmo de mau”.

João Pereira, com o seu instrumento no rancho, o acordeão

José Augusto Rodrigues concorda com o acordeonista do grupo. “Como o João estava a dizer, acho que ainda há um bocadinho o estigma da parte de algumas pessoas em relação ao folclore. Às vezes é um bando de tolos que anda ali em cima do palco, mas não é nada disso que se pretende, nem é nada disso o que nós fazemos. Nós subimos ao palco e sentimos muita responsabilidade pelos trajes que envergamos, que significam aquilo que os nossos antepassados vestiam e faziam, e acho que é uma das maneiras que a nível local temos de preservar as tradições.”

A presença de jovens no conjunto também é reduzida. João Pereira, com 23 anos, é ainda um dos mais jovens do grupo, juntamente com mais alguns colegas da sua idade e mais novos, “filhos de gente que já cá andava” afirma o acordeonista.

No esforço de preservação do Rancho, não são apenas os trajes, as danças e as músicas a serem preservadas. Todos os aspetos da vida dos seus antepassados são guardados em documentos do Rancho. Fazem parte desses documentos registos históricos e demográficos do concelho de Mortágua, os cantares e danças da região, jogos e brincadeiras do passado, adivinhas e provérbios, bem como descrições das composições das habitações, a alimentação quotidiana dos antigos e os seus rituais religiosos.

Há quase quarenta e cinco anos que o Rancho Folclórico e Etnográfico de Vale de Açores espalha as sonoridades do folclore pelo país. Talvez ainda mais importante que isso, preserva tradições e um modo de vida esquecido por grande parte da população, garantindo que gerações futuras possam aprender mais sobre o seu passado. O Rancho continua a percorrer o país, e a elevar o concelho de Mortágua e a aldeia de Vale de Açores, sem esquecer as suas origens.

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