Ser 7º dan de Karaté: do sonho à realidade

Em toda a Europa existem apenas três cinturões negro 7º dan de Karaté da Seiwakai e Japan Karatedo Federation Gojukai. Abel Aurélio Abreu Figueiredo é um deles. Professor na Escola Superior de Educação de Viseu, mestre em Ciências da Educação na Metodologia de Educação Física e doutor em Motricidade Humana, especialidade em Ciências do Desporto, começou a praticar desportos de combate nos anos 70, em Vila Nova de Foz Coa. Em 1979, quando se mudou para Viseu entrou num clube de Karaté e Kung Fu, mas foi apenas em 1981 que começou a praticar Karaté da escola Goju-ryu.

 

O que distingue esta escola de Karaté das outras e porque é que a escolheu?

Goju-ryu é uma das quatro escolas fundamentais na institucionalização do Karaté: Shotokan, Shito-ryu, Wado-ryu e Goju-ryu. O que caracteriza o Goju-ryu do ponto de vista histórico é ser a única escola que ainda mantém a tradição com Karaté chinês. A ilha de Okinawa transformou as escolas chinesas em escolas mais japonesas na transição do século XIX para o século XX. O Japão industrializou-se na transição destes séculos e o movimento de radicalização educativa acaba por apanhar o Karaté. O Goju-ryu é praticado na ilha de Okinawa e no Japão, ao contrário das outras modalidades que são práticas principalmente na ilha. Para além disto, há características técnicas porque o Goju-ryu é uma escola de energia mais interna.

 

O que significa ser uma escola de energia mais interna?

As escolas de artes marciais orientais dividem-se em escolas mais externas (físico) e escolas de índole mais interna (saúde). O facto de estarmos a falar de uma escola com estas raízes tem muito a ver com a perspetiva wellness que acaba por ser importante para perceber esta diferenciação técnica. O Goju-ryu tem muitos katas respiratórios em todas as graduações a partir de cinto negro, não são apenas os katas preocupados com as técnicas de defesa pessoal mas sim com a energia interna. Estas grandes diferenças acabam por ser interessantes culminando numa terceira que é a conexão da escola Goju-ryu ser fundadora da Federação  Japonesa de Karaté (FJK), a primeira federação institucionalmente forte e também uma das primeiras escolas a ter o seu nome registado. Uma outra diferenciação é a dispersão internacional porque, após a II Guerra Mundial, a escola Shotokan dispersou-se internacionalmente e é o mais praticado a nível mundial.  O Goju-ryu tem mais praticantes no continente japonês e em Okinawa e o Shotokan nem tanto porque foi fundada com um perfil mais japonês do que um perfil tradicional de Okinawa.

 

O que o fez escolher esta escola de Karaté? 

Na realidade nós não escolhemos a nossa escola, é o que havia. No início é apenas a magia das artes marciais, a magia do soco, do pontapé, da imobilização. A magia da técnica é começarmos a perceber algumas nuances metodológicas que não compreendemos como praticantes mas sim como praticantes avançados a tentar ser treinadores. Mais tarde, quando entrei no Instituto Superior de Educação e Ciências, em Lisboa, em 1984, é que me apercebi da riqueza da escola de Goju-ryu. As artes marciais influenciaram a minha mudança de vida. Deixei a química cósmica e passei para a química individual, percebendo como é que as coisas podem mudar com a prática desportiva.

 

Como funciona a graduação? 

O sistema de graduações está dividido em kyu, que significa graduados até cinto negro e dan, graduados de cinto negro para cima. Esse sistema, chamado Kyu-dan, é instituído pela organização inicial de modalidades e funcionavam com base nas federações de Karaté. Hoje a Federação Japonesa de Karaté  (FJK) é a mais prestigiada no que toca a graduações, sendo que só praticantes japoneses é que podem ser graduados pela mesma. Mas existem federações ligadas à Federação Japonesa que abrem as graduações nos painéis. Eu pertenço a uma federação dessas, a Federação Goju-ryu, que é relacionada com a japonesa e faço graduações  nos painéis. Mas depois existem associações que fazem graduações individuais, em que é um mestre que reconhece essas graduações, que não são tão prestigiadas como as graduações feitas por painel. Em Portugal, a Federação Nacional de Karaté (FNK) não faz graduações, faz homologação das graduações das associações, sejam elas individuais ou institucionais.

 

Quem lhe fez a atribuição da sua graduação em 7º dan?

No meu caso participei num painel de exames no ano passado na Federação Japonesa de Karaté – Goju-kai em que os juízes são todos nomeados pela Federação. Tinha feito a tentativa há dois anos e tinha reprovado. Fui fazer no ano passado e passei. A mim parece-me que esta graduação é de nível internacional e mais prestigiada e, além disso, tive o orgulho do meu filho ter recebido o 1º dan no mesmo âmbito.

 

Quais é que foram ou são as suas referências no mundo do Karaté?

Isso é uma pergunta muito difícil porque o Karaté tem várias facetas, não é só questão das escolas, mas Bruce Lee, nos anos 70 fazia-me saltar quando íamos ao cine-rossio. Sem dúvida que o Bruce Lee foi alguém que me fez acreditar que podia ser “aquele”. Não foi só um ator foi também um investigador. Morreu cedo e a família publicou um livro dele sobre a arte dos Jetkondo e isso mobilizou-me para a faceta do uso da pena e da espada. Um artista marcial tem de ser bom no domínio cognitivo, o uso da pena, e no uso da espada como reflexão da vida quotidiana. O Bruce Lee é a minha referência inicial de adolescente, mas agora as minhas referências são pessoas no domínio da filosofia, da criação, de reconhecimento institucionais, pessoas a quem eu estou ligado. Sou presidente da International Martial Arts and Combat Sports Society, uma instituição de referência na investigação de artes marciais e desportos de combate onde há colegas de Karaté, por isso agora tenho várias referências de investigadores. No Karaté competitivo, como é óbvio, também existem várias referências como o mestre António Oliva, no domínio do treino, e, no domínio da prática, o meu mestre Seiichi Fujiwara, referência técnica para eu crescer como participante. Portanto tenho referências em mestres na linha Goju-Ryu, referências de treinadores e referências filosóficas essenciais que são importantes. Do Bruce Lee aos dias de hoje é um percurso giro.

 

Em quantas competições de Karaté é que já participou a nível nacional e internacional?

Eu nunca fui competidor de alto talento. A minha experiência como competidor nacional federado termina em 1993 com a participação nos primeiros campeonatos regionais da Federação Nacional de Karate – Portugal (FNK-P), Zona Norte / Centro Norte, aos 29 anos, onde obtive lugares de pódio em Kumite (Combate) e Kata (Formas) e apuramentos para os nacionais, em que não participei porque foram no dia do batizado do meu filho mais velho. Participei nos 1ºs campeonatos nacionais da Federação Portuguesa de Karaté (FPK) em 1986 mas tive poucos resultados e participei antes, desde 1981 em torneios associativos, alcançando alguns primeiros, segundo e terceiros lugares, mas são episódios que não dou importância. Cheguei a ir aos campeonatos da europa de Goju-ryu onde fiquei em 4º lugar em Kata Equipa. Como veterano a minha última prova competitiva foi há dois anos no campeonato do mundo da JKF-Gojukai e fui selecionado para a última eliminatória, mas só de kata (provas de maiores de 50 anos), tendo ganho um torneio mundial da Seiwakai Internacional no Japão na minha categoria.

 

Atualmente apenas treina os seus alunos ou ainda compete?

Continuo a minha prática, apesar de não ser Karaté competitivo. Continuo com a ambição de subir graduações e a querer estar motivado. O Karaté é uma modalidade que permite que vamos evoluindo tecnicamente, mesmo com um nível físico não tão alto. Este nível técnico-tático é dependente do treino, por isso tenho de continuar a treinar.

 

Como professor na área de Desporto e Atividade Física na ESEV, como consegue conciliar a profissão com a prática desta modalidade?

Eu concilio a minha visão como investigador no desporto de combate com a visão enquanto participante. Neste contexto a minha prática de Karaté é levada também como uma prática de investigação. É esta compatibilização entre a vida profissional, de investigador e professor que me vai mantendo atento às realidades da modalidade. A família é sempre a mais prejudicada. Nos treinos, eu acabo por não ter a densidade que gostava, que era de treinar todos os dias, portanto tento fazer uma gestão de tudo.

 

Pode falar da sua recente ida ao Japão?

O Japão tem sido uma experiência muito bonita. Foi a nona vez que fui Japão e este país fez-me perceber outro lado da vida. É bastante organizado do ponto de vista social, não é que eu gostasse de viver no Japão porque na verdade não gostava, mas fez-me perceber uma organização diferente. O Japão é muito social, mas o individuo tem que vestir uma máscara. O japonês veste uma máscara de marido, vai para o emprego e veste uma máscara de empregado, vai como patrão e veste a mascara de patrão. O japonês faz uma distinção de qual a máscara adequada para nos receber bem. Por isso, quando estou a falar com eles, com o investigador japonês e colega de trabalho, tenho que perceber que eu ainda não sei quem ele é. Nós aqui somos latinos, somos quem somos, é muito difícil vestirmos a máscara e ela durar muito tempo. No Japão ligam muito ao detalhe e dão uma importância mais rigorosa e arquitetónica às coisas que é excecional. A experiência de ver à nossa frente, durante a nossa graduação, sete mestres, alguns conhecidos e outros não conhecidos, mas todos com grande conhecimento é um impacto grande. Lembro-me de um episódio de dois miúdos estarem a lutar e de repente um deles dá um toque mais exagerado no outro, que começa a chorar a olhar para os pais. A mãe e o pai continuavam impávidos e sérios enquanto o menino que fez a asneira continuou a lutar. A criança que estava a chorar olhava para o mestre e para os pais e passado 30 segundos já estava outro, novamente pronto para o combate. Se fosse cá tinha ido a correr ter com a mãe e a mãe: “Ai coitadinho do meu menino”. Mas quem resolveu as situações foram eles sozinhos. Com seis ou sete anos as crianças andam na rua a pé e vão de transportes para a escola. Aqui vamos com eles de carro. O Japão é um país muito seguro. São as crianças que limpam as escolas, que fazem as refeições e que servem. No final do treino temos que limpar o Dojo. O Japão tem uma qualidade organizacional de grande autonomia. Aqui somos muito mais dependentes da família.

 

Está a preparar uma ida a Toquio em 2020. O que espera desta viagem?

É uma ida magnífica porque o Karaté vai participar pela primeira vez nos jogos olímpios. O Karaté merece porque tem um respeito enorme pela integridade física do participante. Não se pode pôr o outro Knock-out com traumatismo, se puser o adversário em Knock-out será desqualificado. O Karaté não é bem como o senso comum pensa, todas as modalidades têm técnicas com objetivo de atingir pontos vitais, mas não os usamos para pôr uma pessoa Knock-out, é educativo e não uma modalidade de negócio.

 

Dentro de todas as suas conquistas qual é a que considera mais importante e porquê?

Aquela que vou conseguir daqui a uns anos, o meu 8º dan. Quero treinar para isso, quero ser merecedor dele. Mas para já, tenho de treinar para merecer o meu 7º dan que foi a graduação que obtive. A qualquer momento posso baixar. Não baixo de graduação mas baixo de nível, e eu quero merecê-lo. Eu não quero ter o 7º dan, eu quero ser 7º dan.

 

Há muitas pessoas em Portugal com 7º dan?

Não, com vínculo à minha Associação Internacional e Federação de Estilo (Seiwakai e JKF Gojukai) não há mais ninguém e na Europa só há três. No entanto, através da homologação da Federação Nacional de Karate – Portugal existem diversos 7ºs dan de outras associações de estilos.

 

Quanto tempo é que demora a preparação para o 8º dan?

Vai demorar, só quando o meu mestre achar que eu estou preparado. A partir do 7º dan só fui a provas quando o meu mestre achava que estava preparado. Fui tentar a primeira vez e reprovei. O meu treinador diz que é muito difícil e disse que eu se calhar só conseguia a graduação à terceira tentativa que é o normal. Eu passei à segunda. Com o meu treinador, Seiichi Fujiwara que tem o 8º dan, treino três ou quatro vezes por ano. Além de treinar com ele, treino com pessoas mais graduadas que eu. Sou o mais novo com o 7º dan, mas poderia ser mais novo ainda, porque já não sou tão novo assim. Portanto, a minha luta é conseguir abrir território institucional e preparar tecnicamente as pessoas para que sejam graduadas cada vez mais novas.

 

Como é que vê o percurso do seu filho no Karaté? Conseguiu incutir-lhe esse gosto ou foi algo que surgiu naturalmente?

Foi natural, nunca quis que os meus filhos fizessem algo por eu fazer, quero é que sejam felizes. Só o meu filho mais novo, o Afonso, é que pratica Karaté mas fico contente, independentemente de ser meu filho ou não, porque é difícil encontrar pessoas que adiram ao gosto pela prática desta atividade como eu acho que deve ser praticada, com mais intensidade. Eu gosto de ver participantes com motivação intrínseca, mas não tenho encontrado muitos. Mas gosto muito de ver o meu filho Afonso a não desistir e a continuar a lutar porque vejo que ele dá valor ao que faz.

 

O que o faz gostar tanto do Karaté?

Essa é uma pergunta difícil. É a mesma coisa que perguntar porque gosto tanto daquela pessoa ou porque gosto tanto da minha mulher. O que me faz hoje manter esta paixão pelo Karaté é o facto de que o que dou e o que eu recebo é mútuo, é uma construção mútua. Não existe Karaté, existe karatecas, por isso neste momento o Karaté depende de mim. Cria-se um relacionamento com tanto tempo e tanta qualidade de emissão- receção que já não se sabe bem porque é que se gosta, já não se consegue explicar. Vejo os pontos positivos e consigo explicá-los, mas a minha relação com o Karaté já ultrapassou a explicação. O Karaté já faz parte de mim.

 

Texto: Gonçalo Moura e Rafaela Sousa

Imagens: Abel Figueiredo

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