Quinta do Monte Travesso: a reinvenção após crise por entre os socalcos do Douro

Parte exterior da Quinta do Monte Travesso, em Barcos no concelho de Tabuaço

“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. (…) Um poema geológico. A beleza absoluta.”

Excerto de “Doiro Sublimado” de Miguel Torga in “Diário XII”

Por entre os socalcos do Douro, está a Quinta do Monte Travesso. Até chegar ao destino é preciso subir. Ao longe, o amarelo intenso da tinta que cobre as paredes não deixa desviar o olhar. Segundo consta na documentação, a sua origem remonta para o ano de 1896, data em que o Visconde Vilarinho de São Romão apresentava a propriedade como uma das mais notáveis da sub-região do Cima-corgo. Ao fim de 126 anos de existência, pouco mudou. A cultura tradicional ainda é vista, mas também há espaço para se reinventar.

Reportagem de Luciana Soares

Para visitar basta aparecer e todos os turistas são recebidos pela guia Edna Soares. A visita percorre a casa Monte Travesso e a adega tradicional, e é explicada a história da Quinta e a produção dos vinhos. Por fim, ainda há espaço para provar o “néctar dos deuses”, com três níveis de prova, desde que seja feita marcação prévia. A “vaidosa” é a carrinha Bedford de 1975, anteriormente utilizada para subir as encostas íngremes do Douro. Hoje, quem a conduz é o patriarca da família, José Nápoles de Carvalho que, juntamente com os turistas, percorre as vinhas dando a conhecer o solo xistoso e as diferentes qualidades das uvas, passando pelo Sousão até ao Viosinho.

Entre os socalcos

São cerca de 16 os hectares que rondam a casa Monte Travesso. Rica em solos nobres, possui as castas tintas mais ricas que se conhecem no Douro. Desde sempre que esta Quinta se dedicou à exploração do solo, com plantação de vinhas velhas e vinhas novas, para a produção de vinho.

Salete Cardoso é a capataz da Quinta do Monte Travesso, que conhece as vinhas como a palma da sua mão, e que há 20 anos percorre os trilhos por entre os socalcos, passando grande parte do seu tempo “a conversar com as videiras”. O ano começa com a poda. Nesta fase, é tempo de “apanhar as vides e depois com a rebentação da videira, há que retirar os chamados pâmpanos, para que a produção fique leve”. Já em meados de junho deve-se aplicar o “sulfate para a uva não apodrecer” e, até à vindima, “não se mexe mais na vinha”, atesta a capataz da Quinta do Monte Travesso.

Sobre as doenças e pragas que a videira pode apanhar, o enólogo residente, responsável por todo o processo de vinificação dos vinhos da quinta, durante o período da vindima de 2021, Daniel Souto, esclarece que “é fundamental tratar da videira”, afirmando que “a vinha e o vinho andam sempre de mãos dadas e é preciso ter cuidado e evitar ao máximo qualquer coisa possam afetar a produção e a qualidade do fruto”.

Na região duriense, principalmente na zona de Tabuaço, o mais comum é “o míldio que aparece ou na folha ou na uva”, podendo estas apodrecer e, até mesmo levar à perda total da produção, mas não fica por aqui, já que também existe o oídio, que é “uma espécie de bolor em pó que ataca sobretudo a folha”, explica Salete Cardoso.

Vinha “Nova” da casta Viosinho, do ano de 2012

“Fui ao Douro às vindimas”

De junho a setembro os tempos são de grande angústia, o tempo é imprevisível e a memória faz recordar o ano de 2016, em que granizo e chuvas fortes destruíram a produção vitivinícola por completo. “Até à vindima ando sempre a pedir ao São Pedro que nos ajude, tenho medo de ver o trabalho de todos reduzido a nada” confessa Salete Cardoso.

Chega finalmente o tempo da vindima. Esta é religiosamente feita em setembro e, por consequência da pandemia, é obrigatório o uso de máscara e exigido o distanciamento social. Este é o trabalho favorito de quem trabalha no campo, no entanto nos dois últimos anos não é bem assim. “Antigamente era tudo diferente, cantávamos, andávamos todos juntos e agora não, todos temos medo, temos que andar de máscara com temperaturas superiores a 30o graus. É insuportável. Quando fazemos a pausa do almoço é triste ver cada um no seu canto e não haver o convívio que havia. Era bonito ver o pessoal da roga que se juntava a cantar e a dançar. Este vírus tirou-nos a alegria de vindimar”, assume Salete Cardoso.

Conhecido por ser um trabalho “pesado”, a capataz da quinta do Monte Travesso não esconde a preocupação que tem todos os anos na procura de trabalhadores para a vindima, como afirma. “Esta é uma produção que corre o risco de ir abaixo, pela falta de pessoal, porque os jovens não querem e os mais velhos já não são capazes e não é possível trazer máquinas para vindimar” nos socalcos do Douro.

Após a colheita é tempo de ir para a adega e dar início a todos os procedimentos. Primeiro o vinho é pisado, depois começa a fermentação, seguida da filtração, em que são retiradas todas as cascas e grainhas. Por último, passa para as cubas onde fica cerca de cinco meses. Segundo o enólogo Daniel Souto, todos estes processos só são bem- sucedidos graças “ao rigor, paixão e dedicação que todos os funcionários têm para que tudo corra bem”.

A produção de 2021 “teve bastante qualidade, foi um ano em que não houve quebra”, atesta Daniel Souto. A preocupação com o clima foi constante e, como explica o enólogo, “o tempo afeta diretamente o ciclo vegetativo da videira e, consequentemente, a maturação da uva. Diferentes maturações levam a vinhos com resultados diferentes”, no entanto este ano o “resultado foi bom e o vinho produzido tem muito potencial”.

Adega típica com toques modernos da Quinta do Monte Travesso

A procura em Portugal e no Mundo

Diz o ditado “que até ao lavar dos cestos, é vindima”, mas o trabalho não acaba nessa fase. Com todos os processos concluídos e o vinho em condições, é preciso engarrafar e vender. Tal como refere o proprietário, Bernardo Nápoles de Carvalho, “a Quinta do Monte Travesso não vende vinho para supermercados nem hipermercados”, o produto é escoado para distribuidores nacionais que revendem para vários restaurantes portugueses.

Aos poucos e poucos, a empresa conseguiu conquistar o mercado nacional, mas há que se destaca: o brasileiro. Segundo Bernardo Nápoles de Carvalho, “a procura brasileira é muito grande” e, mesmo estando separados por um oceano, o Brasil, nos primeiros seis meses de 2021, aumentou para 42,3% o consumo de vinho português.

Na China e na Europa também há uma elevada procura de vinho Monte Travesso e, segundo a Organização Interprofissional do Vinho de Portugal, entre janeiro e agosto de 2021, a exportação de vinhos portugueses registou um total de 581 milhões de euros, uma subida de 13% face ao ano passado.

Armazém e zona de engarrafamento onde é colocado todo o vinho para posterior venda

A pandemia e as quebras nos lucros

Já não é novidade que a pandemia abalou o setor económico. No caso da Quinta do Monte Travesso, a quebra no setor das vendas aumentou. Em Portugal, os restaurantes estiveram fechados praticamente um ano, entre 2020 e abril de 2021 e, deste modo, as distribuidoras não puderam transportar o vinho, porque como a restauração se encontrava encerrada, “deixaram de poder comprar e a Quinta de poder vender”, esclarece Bernardo Nápoles de Carvalho.

Segundo garante o proprietário, a quebra das vendas de 2019 para 2020, ultrapassou em larga escala os 50%. Mesmo conseguindo manter a quantidade de exportação de vinho, sobretudo para o Brasil, Bernardo Nápoles de Carvalho não esconde que esta “foi a salvação, juntamente com o enoturismo, que, quando era possível abrir, gerava alguma receita”.

No ano de 2021, “ainda que de forma muito instável, tudo melhorou”, com a reabertura dos restaurantes e as restrições impostas pelo governo. Atualmente, a Quinta do Monte Travesso começa a voltar às convergências normais, mas de forma muito gradual e já consegue vender para os restaurantes de norte a sul do país.

Turismo, a salvação no meio da crise

Começou por ser uma casa de família que se dedicava à produção de uvas e que vendia para “o vinho do porto”. Mais tarde, começaram a produzir o excedente e a engarrafá-lo, tornando-se produtores de vinhos e de azeite. Com o avançar dos tempos, a Quinta do Monte Travesso está totalmente inserida no turismo, oferecendo visitas guiadas, provas de vinhos, almoços tradicionais harmonizados com o vinho, produtos locais, piqueniques e o alojamento, nas restauradas casas de campo. Em tempo de pandemia, para quem trabalha na Quinta do Monte Travesso, o turismo foi a verdadeira salvação.

Na vertente do enoturismo, esta é uma área com cada vez mais afluência. Segundo explica a guia turística Edna Soares, consiste “numa atividade que se baseia em tudo o que está relacionado com o vinho, desde a cultura, tradição e produção”.

Apostar na inovação tornou-se numa forma de querer “alavancar os empreendimentos de forma mútua. O negócio dos vinhos foi o primeiro, depois o enoturismo veio ajudar nessa área e vice-versa. Nesta fase, faz todo o sentido ter a parte das dormidas, que é um complemento do enoturismo, e não só, porque também ajudou a recuperar o património que existia, trazendo vida às ruínas que existiam, com duas casas: a Casa da Tília e do Sousão, um T1 e T3 respetivamente, ambos com piscina privada”, revela o proprietário.

Esta aposta em casas de campo, na perspetiva de Edna Soares, “só traz vantagens, uma vez que, com esta abertura, vai ser possível atrair mais pessoas. Este negócio, vai expandir o turismo da quinta, vai trazer mais lucros, mais benefícios e ainda dar a conhecer a marca e os produtos”. A “Casa da Tília” foi a primeira a abrir e esteve ocupada a maior parte do verão. Bernardo Nápoles de Carvalho, ainda não consegue perceber se a construção trará lucro e deseja que “a pandemia estabilize e permita explorar esta área de turismo no Douro”.

Interior da “Casa da Tília”, uma recente aposta no alojamento em casas de campo

De “pé-de-chinelo” à classe elitista

Em Portugal, a procura por autocaravanas, em 2020, aumentou 400%. O Douro é um espelho da escala nacional, já que cada vez é mais comum este tipo de turismo. O proprietário, Bernardo Nápoles de Carvalho, explica que “o enoturismo e o turismo do Douro, eram associados a uma classe elitista e os turistas que vinham nas caravanas eram vistos como “um pé de chinelo”, ou seja, uma coisa não era compatível com a outra, mas o que se tem visto é que, cada vez mais, as pessoas que vêm nas autocaravanas são pessoas civilizadas, que sabem estar e que não devassam o espaço e que convivem perfeitamente com os clientes que ocupam as casas sem qualquer conflito”.

Na região duriense o mais comum durante vários anos era o “turista flydrive”, que vem de avião e aluga carros para viajar ao redor do país. Este é conhecido por consumir e não comprar, trazendo desvantagens ao comércio, comparativamente ao público caravanista que, por não ter risco de perder as compras nos aeroportos, acaba por adquirir mais produtos.

Atualmente, a procura por parques de autocaravanas é cada vez maior. A Quinta do Monte Travesso oferece água, eletricidade, casa de banho e parque aos caravanistas e estes, como forma de agradecimento, acabam por comprar e até fazer provas de vinho. Salete Cardoso considera esta “uma vertente que ajuda muito, dá pouco trabalho e compensa” e, por esse facto, Bernardo Nápoles de Carvalho, manifesta-se contra “cobrar cinco euros por cada dia de estacionamento. É uma ridicularia que não traz vantagem nenhuma”.

Os turistas chegam mudados

“Mudou tudo” talvez seja o mais ouvido quando o tema é a pandemia. Edna Soares, guia turística na Quinta do Monte Travesso, que ocupa esta cargo há quatro anos, reconhece que a covid-19 veio “mudar a postura das pessoas, já não há abraços e sorrisos, logo em Portugal, um país conhecido pelas gentes hospitaleiras e afetuosas”. Para circular dentro do estabelecimento é obrigatório o uso de máscara, excetuando nas provas de vinhos e almoços.

Edna Soares revela que, no ano de 2019, “as visitas e provas eram diárias e o turismo seguia a um ritmo alucinante. Havia uma grande perspetiva para o futuro, mas em 2020 tudo mudou”. Recorde-se que, em 2020, o número de chegadas a Portugal de turistas não residentes tinha atingido 6,5 milhões, correspondendo a uma diminuição de 73,7% face a 2019, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).

“Para a Quinta, turisticamente falando, o ano modelo foi 2019, o ano terrível foi 2020, nem o verão salvou o resto do ano, e por fim, 2021, que começou muito mal, mas a partir de agosto foi surpreendente, as visitas apareceram em dobro, e registou-se um aumentou do número de visitantes portugueses”, explica a guia turística.

Contrariamente ao esperado, o presidente da Turismo Porto e Norte, Luís Pedro Martins, em declarações afirmou que o Douro, Minho e Trás-os-Montes, em 2020, alcançaram taxas de ocupação superiores a 95% o que, em oposição com os 15% das grandes cidades, se revela muito superior. Neste sentido, a aposta em casas de turismo por parte da Quinta do Monte Travesso revela-se, à partida, vantajoso.

Local de receção aos Turistas para visitas e provas de vinho

Sustentabilidade ambiental e económica

A preocupação com meio ambiente cada vez mais é assunto. Decerto que em 1896 a preocupação não era tanta como hoje, quem o diz é Salete Cardoso deixando claro que “primeira não havia problema com nada, existia liberdade total”, mas hoje em dia já não é bem assim. Bernardo Nápoles de Carvalho, esclarece que “sempre houve uma preocupação ambiental, principalmente na parte da viticultura. Há um cuidado em manter os pulverizadores calibrados para deitar só aquilo que é estritamente necessário para a videira e não andar a gastar calda a mais nos tratamentos”, afirmação que Salete Cardoso complementa, assumindo que “atualmente até na vinha se faz reciclagem e, pode parecer que isso dá mais trabalho, mas é mentira. Aliás, até compensa porque a vinha fica mais limpa e o serviço é muito mais eficaz”.

Apostar em castas certas, melhorar os pontos de água e produzir azeite 100% biológico, são algumas das medidas adotadas. Também no turismo foram implementadas medidas, com a colocação de painéis solares, nas casas de campo e a oferta de bicicletas para circular no terreno, evitando os carros. Para o proprietário, estas “são pequenas iniciativas que acabam por fazer a diferença”.

Para além deste tipo de preocupação, Bernardo Nápoles de Carvalho diz que “muitas das vezes o fator económico é esquecido e a verdade, é a sustentabilidade económica, é tão importante como a ambiental”. Como justificação, o dono reforça a importância da criação de postos de trabalho, o aproveitamento total dos espaços com novos negócios, esclarecendo que “se houvesse uma acomodação e não uma evolução, a quinta era altamente insustentável”. O proprietário acredita que “a produção e engarrafamento de vinho e azeite, assim como a casa que recebe turistas, é uma forma de sustentabilidade económica da exploração, que se fosse de outra maneira não o era”.

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), no ano de 2020, as emissões de Gases de efeito de estufa (GEE) reduziram cerca de 8,5% face a 2019, o consumo de energia também decresceu 7,2% e a qualidade do ar melhorou, com 33,8% dos dias com muito boa qualidade do ar. No que toca a fontes renováveis, a energia produzida representou 59,6% do total.

Entrada para o parque das caravanas

Presente, investimento e futuro

Investir no presente para colher lucros no futuro, tem sido o lema da Quinta do Monte Travesso. Bernardo Nápoles de Carvalho não esconde o desejo de tornar a “quinta num polo de enoturismo conhecido na região e cada vez mais bem implementado”. O turismo não fica por aqui, já que “a médio prazo, existe vontade de abrir mais duas casas de campo”, revela.

As apostas são grandes e os investimentos também, mas, por agora, a vontade de “regressar à normalidade com sorrisos visíveis e abraços apertados” são, para Edna Soares, a maior vitória que o Douro e a quinta podem alcançar.

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