Deficiência no curriculum vitae: as desigualdades no acesso ao emprego

Num mundo que se afirma cada vez mais inclusivo, pessoas como o Tiago, a Isabel, a Mariana e a Alias continuam a ser esquecidas. Colocados de parte por serem diferentes, carregam consigo o peso das palavras discriminatórias, os olhares de quem não os vê como pessoas e o carimbo da deficiência em destaque no seu curriculum vitae.

Por Ana Catarina Correia e Daniel Fernandes Silva

Tiago Magano tem 23 anos e uma palavra-chave para descrever a sua infância: bullying. Marcado por insultos que iam desde “deficiente” a “anormal”, o jovem chegou a ver a sua sensibilidade ser testada com pioneses que lhe colocavam na cadeira. Ainda que tenha sido forçado a andar de mãos dadas com a violência verbal e não-verbal que sempre sofreu, nada o impediu de vencer nos estudos e mostrar que ter uma deficiência não é sinónimo de não conseguir chegar mais longe.

Tiago Magano, 23 anos

Marcada pela exclusão e pelos insultos foi, também, a infância de Mariana Machado. “Deficiente, anormal e tecla três – menção à tecla três dos telemóveis da década passada onde estava inscrita a sigla DEF que muita gente associava à palavra ‘deficiente’ – foram palavras que me marcaram de uma forma bastante negativa ao longo da minha vida de estudante”, refere a jovem de 28 anos. Excluída de todos os grupos na principal fase do seu desenvolvimento, Mariana Machado lembra que “foi particularmente doloroso na parte da adolescência e mesmo do lado dos rapazes o único feedback que eu recebia era relativo à questão de existir, ou não, cura para a minha doença”.

Com uma perspetiva mais pragmática da sua infância, Isabel Calheiros, de 21 anos, cresceu habituada à ideia de que, já na vida adulta, não iria ser fácil encontrar emprego. Sempre de pés assentes na terra, a recém-licenciada em Comunicação Social, encara o mundo do trabalho como um jogo no qual as pessoas com deficiência (PcD) precisam de “mostrar as suas capacidades para “jogar” muito antes de chegarem à casa de partida”.

E quando a deficiência tem lugar de destaque no curriculum vitae?

Tiago Magano tem 23 anos, um mestrado em Turismo e Hotelaria e está, neste momento, a frequentar um doutoramento na área de Gestão. Diagnosticado com espinha bífida, uma doença congénita não-adquirida, hereditária e, sobretudo, motora, Tiago Magano é um dos mais de 14 mil portugueses (segundo dados disponibilizados pelo Instituto de Emprego e Formação Português para o mês de março deste ano) com deficiência e sem emprego em Portugal.

E se a sua infância foi marcada por momentos difíceis, também a sua entrada na vida adulta e no mercado de trabalho trouxe desafios e dificuldades. “Entrar no mercado de trabalho é muito difícil. Ninguém nos facilita nada nas entrevistas de emprego”, afirma Tiago Magano, realçando ainda que chega a falar nas vantagens que as empresas conseguem ao contratarem uma pessoa com deficiência e, nem assim, recebe uma chamada de volta. “Eles dizem que vão telefonar e depois acabam por não dizer nada, nem se fomos selecionados ou não”. O pior, segundo o estudante de Gestão, é mesmo quando o discurso da entidade empregadora muda ao ser referida uma deficiência. O jovem afirma que, a partir do momento em que refere a sua deficiência até “a recetividade às ideias propostas muda e elas deixam de ser bem aceites”.

Isabel Calheiros cresceu com as histórias de outras pessoas com deficiência que não conseguiam arranjar emprego, dado o elevado número de entraves que lhes colocavam “quando, porventura, demonstraram interesse em fazer parte da equipa de uma determinada empresa”.  Afetada a nível motor pela sua deficiência (paralisia cerebral), a jovem afirma estar radiante com a sua entrada no jogo onde dificilmente se consegue entrar: “Estou em vias de iniciar, formalmente, a minha entrada no mercado de trabalho – através de um estágio profissional do IEFP, direcionado a pessoas com deficiência – e não podia sentir-me mais concretizada”.

Recém-licenciada e prestes a formalizar a sua entrada no mundo do trabalho, Isabel Calheiros acredita que, apesar de todas as barreiras que lhes colocam à frente, as PcD’s “têm outras vivências e a sua diversidade funcional pode trazer riqueza a uma empresa. A sua visão da realidade, ao ser distinta, pode ajudar a organização a adquirir novos pontos de vista e isso é muito importante”.

As estatísticas e os testemunhos de quem as consegue contrariar

Em Portugal, em 2018, havia mais de 1 milhão e 700 mil pessoas com algum tipo de deficiência. Os dados relativos ao desemprego registado pelo IEFP mostram que, nesse mesmo ano, do total de pessoas inscritas como desempregadas, 3,85% tinham deficiência. “A comparação com 2009 revela um aumento da proporção de pessoas com deficiência desempregadas, que nesse ano constituíam 1,71% do total de desempregados/as”, pode ler-se no relatório do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH) do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCPS) Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2019.

A contrariar as estatísticas, Mariana Machado, de 28 anos, trabalha atualmente em consultoria na área da tecnologia, ao mesmo tempo que faz uma especialização avançada em serviço social. Nasceu com uma paralisia cerebral espástica, com ênfase nos membros inferiores, algo que dificulta o seu equilíbrio e a elasticidade do seu corpo. A deficiência foi provocada pelo seu nascimento prematuro e pelo tempo em que o seu cérebro ficou sem receber oxigénio até que a colocassem numa incubadora.

Mariana Machado, 28 anos

A entrada no mercado de trabalho, para Mariana Machado, aconteceu há quatro anos e a consultora admite, ao contrário de Tiago Magano, não ter encontrado qualquer dificuldade. “Sinto-me bem no emprego que tenho e não tive muita dificuldade em ser aceite, uma vez que o facto de ser totalmente autónoma também me facilitou essa entrada no mundo de trabalho”, afirma Mariana Machado, ainda que reconheça os estigmas que a rodeiam, nomeadamente em relação às supostas vantagens da pessoa com deficiência. “Está muito presente a ideia, principalmente dos meus colegas de trabalho, que se eu tenho uma deficiência então também devo ter uma série de descontos e regalias”. Esta é uma ideia que deixa Mariana entre risos pela ironia da situação, uma vez que, de acordo com a legislação portuguesa, a incapacidade tem de ser superior a 60% para que a pessoa com deficiência tenha acesso aos seus direitos. Aliás, os 30% de deficiência de Mariana Machado, não lhe dão direito nem a ter estacionamento prioritário, nem a descontos dirigidos a pessoas com fraca mobilidade.

Num outro ponto da Europa está Alias Elise, natural da Alsácia e a trabalhar em Paris na área de design gráfico e da fotografia, a jovem conta que a entrada no mercado de trabalho foi fácil, mas que há muitas outras barreiras para ultrapassar. “Em França, não falamos o suficiente sobre a independência das pessoas com deficiência, da sua vida social e profissional ou da sua sexualidade, que é um grande tabu. As pessoas com deficiência também não estão presentes em programas de televisão e há muita pena e validismo ao nosso redor”, afirma a fotógrafa.

Alias Elise deixa ainda claro que as questões da acessibilidade para as pessoas com mobilidade reduzida estão longe de ser ultrapassadas, em França. Nem sempre esteve agarrada a uma cadeira de rodas, mas desde então as dificuldades têm sido imensas. “A acessibilidade ainda é muito complicada. Muitas lojas, mas também locais públicos são inacessíveis. Então, nós pessoas com mobilidade reduzida saímos cada vez menos porque sabemos que vamos acabar por ficar presos em algum lugar. Muitas vezes eu quero fazer uma viagem de comboio, mas nem todas as carruagens estão adaptadas para receber uma cadeira de rodas, além de que na minha localidade existem apenas 3 estações que são acessíveis para pessoas com mobilidade reduzida. Além disso o facto de não existirem profissionais nas estações de comboio para nos ajudarem a entrar ou sair das carruagens não facilita a nossa mobilidade”.

A Estratégia Europeia para a Deficiência e o que ainda está a falhar

Em março deste ano a Comissão Europeia apresentou uma nova Estratégia Europeia para a Deficiência, assente em princípios como a cidadania, direito à vida digna e vida independente, e eliminação da discriminação. No entanto, a opinião da eurodeputada Marisa Matias, permanece firme desde 2014: “há, ainda, uma lógica muito orientada para o institucionalismo e pouco orientada para as pessoas e para os direitos das pessoas”, afirma. Para a eurodeputada do Bloco de Esquerda, o caminho para o sucesso destas estratégias passa por ouvir as pessoas e as organizações que representam essas mesmas pessoas. “Muitas vezes o desenho das políticas falha ou porque não existe, pura e simplesmente essas preocupações não estão lá, são inexistentes, ou porque são desenhadas de cima para baixo sem ter em conta aquilo que são os contributos de quem vive essas realidades e que pode ajudar a desenhar. Portanto, do ponto de vista das políticas para a deficiência, eu acho que a maior falha é mesmo o envolvimento das populações afetadas”.

Marisa Matias

Marisa Matias destaca que, segundo os testemunhos que tem recolhido nos centros de vida independente, a integração de pessoas com deficiência no mercado de trabalho tem sido difícil, pois há uma “grande resistência” em empregar estas pessoas. É, por isso, importante a aplicação de “metas legais e vinculativas pois, infelizmente, não podemos esperar que a sociedade mude por si mesma, porque as lógicas de reprodução, da discriminação e das desigualdades são imensas e, também nas empresas, há uma ideia feita de que as questões da produtividade estão mais ligadas a um determinado tipo de trabalhadores e trabalhadoras, nas quais não cabem pessoas com deficiência, sublinha a eurodeputada.

Um longo caminho até à igualdade

Num momento em que o mundo inteiro sofre com as consequências de uma pandemia pela qual ninguém esperava, Helena Dalli, comissária europeia para a igualdade, admite que, “embora a pandemia nos tenha afetado a todos, as pessoas com deficiência foram as mais atingidas”. A pandemia da Covid-19 eliminou milhares de empregos, muitos deles ocupados por pessoas com deficiência, o que fez aumentar o risco de pobreza extrema por parte das mesmas.

Numa União Europeia onde “o caminho para a igualdade ainda é longo e a pandemia agravou as desigualdades existentes, as pessoas com deficiência ainda estão em desvantagem quando a sua situação é comparada à das pessoas sem deficiência. Devido a desigualdades estruturais, o acesso aos cuidados de saúde, à aprendizagem ao longo da vida, ao emprego e às atividades recreativas continua a ser difícil, a participação na vida política é limitada”, afirmam Helena Dalli e Nicolas Schmit, comissário europeu do emprego e dos direitos sociais.

Nicolas Schmit e Helena Dalli

A legislação da UE proíbe a discriminação e estabelece que os empregadores devem proporcionar adaptações razoáveis além de a União Europeia ter uma das mais extensas legislações antidiscriminação do mundo. Apesar disso e, segundo os dois comissários, apenas metade das pessoas com deficiência está empregada, em comparação com 75% das pessoas sem deficiência. Garantem, no entanto, que a Comissão Europeia, em conjunto com as organizações de pessoas com deficiência, irá desenvolver medidas para melhorar a participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Por parte dos comissários, Helena Dalli e Nicolas Schmit, fica ainda a garantia de que a “Comissão irá continuar a promover a economia social, que oferece serviços e oportunidades de emprego para as pessoas com deficiência. Até ao final deste ano, a Comissão irá adotar um Plano de Ação para a Economia Social, aproveitando o potencial deste setor para criar empregos de qualidade e contribuir para um crescimento justo, sustentável e inclusivo para todos”.

87 milhões de pessoas na União Europeia têm algum tipo de deficiência. Ainda assim, questões como a igualdade e como o direito às mesmas oportunidades no mundo do emprego continuam a ser esquecidas pela sociedade em geral, que não é educada para compreender os entraves existentes para a pessoa com deficiência. Os planos e os investimentos já começam a ser visíveis, mas há ainda um longo caminho a percorrer para que estes sejam suficientes e justos, sobretudo em tempos de pandemia.

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