104 Dias: a história de um salão de beleza que ficou com a vida em suspenso

O cabelo é o vestido que nunca tiras.
Ele fala por ti todos os dias e valoriza o teu espírito

Um cabeleireiro é isto mesmo, a imagem. As pessoas vão para tratar da sua imagem, porque, afinal, são eles quem cuidam do nosso aspeto, daquele primeiro impacto. Mas, um salão de beleza não é só isto…com a convivência eventualmente acaba por surgir amizade verdadeira, confiança; aquilo que se pode chamar de uma família, que nem uma pandemia conseguiu abalar. Com as portas fechadas durante 104 dias, muitos dos laços que se criam nestes espaços foram reforçados, demonstrando que são para a vida!

Reportagem de Luís Silva

Com uma história já de duas décadas, o cabeleireiro Rostos Simétricos, localizado no bairro de Marzovelos, em Viseu, foi fundado a 15 de abril de 1998 com o nome Elas e Eles. Desde então, o salão de beleza tinha fechado apenas durante um ano, em 2004, quando Catarina Freitas, sócia-gerente do estabelecimento, decidiu tirar um ano sabático em conjunto com o marido. O negócio corria de vento em popa, sendo mesmo um dos salões de cabeleireiro mais concorridos de Marzovelos. “Ganhava dinheiro quando não tinha empregadas, depois arranjei empregadas e deixei de ganhar dinheiro”, comenta a gerente entre risos.

O período negro dos confinamentos. «Entrei completamente em pânico»

Março de 2020. Chega o fatídico mês que ainda assombra tudo e todos, sobretudo aqueles que vivem por conta própria. Apanhando todos de surpresa, Catarina Freitas recorda que, aquando do primeiro confinamento, não sabia muito bem para o que ia. “Fechei a porta do cabeleireiro a pensar que ia para casa apenas durante 15 dias”…duas semanas viriam a assumir a forma de quase dois meses. Neste período, cerca de 20% dos cabeleireiros do país não aguentaram e declararam insolvência, mas o Rostos Simétricos conseguiu manter-se à tona.

A entrada em 2021 foi a machadada final em muitos dos estabelecimentos que haviam resistido ao ano anterior, pois em janeiro, Portugal entrou no segundo confinamento. “Da segunda vez, entrei completamente em pânico. Chegou a passar-me pela cabeça ter de fechar as portas”, conta a gerente. Em desespero por temer não conseguir cumprir as suas obrigações, Catarina Freitas chegou mesmo a contratar uma advogada para declarar insolvência e pôr fim a uma luta contra a pandemia de Covid-19. “A minha advogada é minha cliente e disse que eu era maluca”, confessa. E, desta forma, continuou esta longa batalha de cabeça erguida.

Durante a quarentena, as maiores preocupações de Catarina Freitas foram ter a consciência tranquila de que ia trabalhar com tudo pago. Com as portas fechadas durante quase quatro meses, nos dois confinamentos, teve que pagar o IVA, a Segurança Social, a renda, os ordenados, a medicina no trabalho, a higiene e segurança, fornecedores. “Foi muito cansativo”, reconhece.

Sem qualquer apoio por parte do Estado, Catarina Freitas conseguiu pagar tudo do seu bolso, tendo apenas recebido 80% do lay-off de duas das funcionárias do cabeleireiro. Por agora, o seu maior medo é que haja um terceiro confinamento. “Se voltarmos a fechar vou para a garagem da minha casa atender clientes”, garante a sócia-gerente do salão de cabeleireiro.

Vida dos salões de beleza em suspenso

A vida no Rostos Simétricos, assim como de todas as funcionárias que lá trabalham, foi interrompida de um momento para o outro. Sofia Morgado, praticante de cabeleireiro no salão de beleza, desabafa que chegou a temer pelo seu emprego. “Manter a calma” e abstrair-se de toda a situação foi a forma que conseguiu arranjar para lidar com o stress e o nervosismo. Para compensar o facto de não estar a trabalhar, a cabeleireira decidiu encarar o confinamento como umas “férias”, um período de relaxamento.

Já Regiane Gonçalves, esteticista no mesmo estabelecimento, utiliza as palavras “medo”, “incerteza” e “insegurança” para descrever os dois confinamentos. “De certa forma não sabíamos se abrisse, como ia abrir, nem quantos clientes iriam voltar, ou se iriam voltar”, assume. Apesar de não ter efetuado qualquer serviço ao domicílio, a esteticista admite que, na eventualidade de um novo confinamento, terá de considerar essa necessidade.

Contudo, houve estabelecimentos que desafiaram as regras impostas pela Direção-Geral de Saúde (DGS) e continuavam a atender clientes de forma clandestina. Apesar disso, Catarina Freitas confirma que o seu salão de beleza não fez nenhum serviço ao domicílio. “Era proibido e eu gosto de cumprir as regras”.

Admitindo que quase todos os cabeleireiros que conhece fizeram “serviços por fora”, a sócia-gerente refere que “vivemos a geração do olha para o que eu digo, mas não olhes para o que eu faço”. Compreendendo por um lado este comportamento, no sentido que todos precisam de pagar as contas, por outro afirma que “a lei é para cumprir” e que se tivesse sido levada a sério, as coisas não teriam chegado ao ponto a que chegaram. “Como é que eu posso dizer aos meus filhos que eles não vão à escola e depois posso chegar a casa com unhas de gel feitas?”, questiona Catarina Freitas.

Também os clientes não viam a hora de voltar

Com o salão de beleza encerrado, foram muitos os clientes que contactavam as funcionárias em busca de dicas de como cuidar da sua imagem em casa. Regiane Gonçalves relembra que foi uma espécie de “guia” de como cuidar das unhas e mãos. Por chamada ou por mensagem, a esteticista dava orientações, especialmente, às clientes com unhas de gel. “No caso das minhas clientes, como muitas delas têm gel, não sabiam como tirar em casa, e eu dizia para irem limando as unhas para não partirem”, explica.

Sendo este o seu espaço de eleição, ao qual se costuma deslocar três vezes por semana, Catarina Correia, enfermeira e cliente do salão de beleza, admite que sentiu muita falta do cabeleireiro durante os confinamentos. “Nós críamos hábitos ao longo da vida e quando nos tiram estes hábitos, é sempre difícil. Senti falta de fazer madeixas, de lavar a cabeça e do próprio convívio”. De forma a combater a impossibilidade de se deslocar ao Rostos Simétricos, Catarina Ferreira ainda tentou pintar o cabelo em casa, “mas nunca corre tão bem como no cabeleireiro”.

A esperança da reabertura. «A primeira semana ficou “quase completa”»

Com a reabertura em março deste ano, os telemóveis não pararam de tocar. A reação dos clientes não podia ter sido melhor. No dia em que o primeiro-ministro António Costa anunciou que os salões de beleza poderiam reabrir novamente, a primeira semana na agenda ficou logo “quase completa”. A 15 de março, a vida recomeçou no cabeleireiro Rostos Simétricos.

Porém, apesar desta corrida às marcações, as coisas mudaram radicalmente. Apenas um terço das pessoas podem ser atendidas e há uma despesa muito maior com os produtos desinfetantes. Sofia Morgado, conta que, no princípio, era obrigatório o uso de sapatinhos para os pés, de viseira, de luvas, e de toalhas descartáveis. Sendo este um espaço que envolve muito toque, ainda há pessoas com algum receio, mas a praticante de cabeleireiro assegura que todas as funcionárias tentam sempre com que os clientes fiquem descansados e, neste sentido, “desinfetam sempre tudo à frente deles”.

Embora já se encontrem de portas abertas, Catarina Freitas realça que ainda são muitas as dificuldades que enfrentam por terem estado tanto tempo fechados, e vai mais longe: “tenho que trabalhar três ou quatro vezes mais para ter exatamente o mesmo lucro que outros cabeleireiros têm. É muito difícil e há vezes em que desanimo”. Mas, tudo ganha mais alegria e esperança com a chegada dos clientes, alguns já de há 20 anos. Encerrado durante vários meses, a essência do Rostos Simétricos permaneceu, como sendo um espaço de desabafo e de conversas. “Há quem diga que nós somos os psicólogos de graça”, salienta a sócia-gerente.

A valorização dos cabeleireiros como bens de primeira necessidade

A pandemia e os consequentes confinamentos obrigaram cerca de 10 mil salões de beleza e barbeiros por todo o país a fecharem, arrastando-os para uma crise sem precedentes e afetando quase 30 mil pessoas, entre empresários e trabalhadores. Ainda assim, é possível retirar-se algo positivo de toda esta situação. Segundo Catarina Freitas, foi preciso uma pandemia para as pessoas se aperceberem de que os cabeleireiros e os barbeiros são um bem de primeira necessidade.

Para as senhoras, cortar o cabelo, pintar e fazer madeixas; e para os homens, cortar ou fazer a barba revelaram-se, à partida, serviços mais importantes do que realmente se pensava. “Eu acho que uma pessoa que ande doente, ou deprimida, ou que tenha baixa autoestima, se for a um cabeleireiro fica logo muito mais feliz”, reforça. Foi esta ausência que levou à valorização dos salões de beleza. E é esta caraterística específica que cria laços de uma vida. “Há pessoas que não são só clientes, já são da minha família”, completa a sócia-gerente.

Afinal, a nossa imagem dá-nos alegria; “se te sentes bem por fora, ficas melhor por dentro” e é aqui que, para a gerente e funcionárias do Rostos Simétricos, assenta a verdadeira natureza de um cabeleireiro. Porquê? Porque um cabeleireiro é isto mesmo, a imagem.

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