Descansa em paz, desporto-rei

É oficial, o futebol morreu. A Superliga Europeia foi anunciada pelos 12 clubes fundadores – AC Milan, Arsenal FC, Atlético de Madrid, Chelsea FC, FC Barcelona, FC Internazionale Milano, Juventus FC, Liverpool FC, Manchester City, Manchester United, Real Madrid CF e Tottenham Hotspur – e outros três clubes vão ser convidados a participar na época inaugural, que deverá começar em agosto.

Por Kevin Santos

Porque é que a Superliga Europeia representa o fim do futebol? Porque se sustenta em dinheiro, apenas em dinheiro. Não há meritocracia, não há espaço para sonhos. Será jogada por 20 equipas: os 15 fundadores, que não descem, não saem e vão ter a sua posição salvaguarda, e os outros 5 serão equipas qualificadas através de mérito, através do desempenho da época anterior (esperem, afinal há espaço para mérito desportivo…). Se o futebol já estava envenenado pelo dinheiro, pela ganância dos ricos, esta foi a última machadada nos nossos sonhos, nos sonhos dos adeptos do desporto-rei. Os ricos ficarão mais ricos, os pobres cada vez mais pobres…

Os clubes, governados pelos seus magnatas, estão a demonstrar o seu poder. O poder de rebelião face às instituições que governam o futebol (UEFA, FIFA e as próprias federações e ligas dos países em questão). Alguns acreditam que tudo está a acontecer muito depressa. Pois, não é bem assim. Há anos que este processo se vai desenrolando. Na minha opinião, tudo começou, precisamente com Florentino Pérez, o presidente do Real Madrid e da Superliga Europeia. Em 2000, no seu primeiro mandato, começou a era dos galácticos. Figo, Zidane, Ronaldo, Beckham, Michael Owen… Investimento que nunca havia sido visto até então. O desporto começava a ser esquecido.

O passo seguinte foi a introdução dos magnatas em vários clubes europeus. Especialmente em Inglaterra, sendo Chelsea e Manchester City os exemplos máximos. Porém, até os clubes mais tradicionais se tornaram propriedade de magnatas americanos. Clubes históricos, criados pelo povo, como Liverpool e Manchester United. Vivemos na ilusão de que os clubes continuam a ser dos adeptos, mas são apenas mais um negócio, uma marca. E é aqui que entra a importância do exemplo alemão, a regra 50+1.Uma regra que não permite que um clube seja controlado por um investidor privado, com mais de 50% de ações. Contem quantos clubes alemães aceitaram a Superliga Europeia…

Depois destes acontecimentos, era uma questão de tempo. Arséne Wenger tinha denunciado a possibilidade de uma Superliga Europeia em 2009 (!), afirmando que “que dentro do futebol há algumas vozes a mexerem-se nos bastidores para levar a cabo esta ideia, especialmente se virem as regras da UEFA tornarem-se demasiado restritivas para os principais clubes”. A UEFA distribui as receitas por todos os clubes, mas alguns clubes, denominados ‘grandes’, estavam, já há 12 anos, “gradualmente mais descontentes por verem os lucros seguirem para a UEFA e esta distribuí-los por diferentes clubes”. Ou seja, para garantir mais e mais fundos, os clubes pretendem acabar com as bases do desporto: integridade, competitividade e mérito desportivo.

Quanto aos clubes fundadores, vejo dois grupos distintos, que se mesclam em certos aspetos. De um lado, os que nada têm, nada ganharam e se consideram ‘grandes’. Do outro, os colossos, donos de um histórico inabalável. Os primeiros nunca ganharam nada de relevo, ou se o fizeram, foi há muito tempo atrás. Andam perdidos pelo meio da tabela e encontram na Superliga Europeia uma solução fácil. Os segundos são os que mais desiludem, sabem o que é ganhar, sabem o que é lutar para conseguir os seus objetivos, alguns criados por trabalhadores, pessoas do povo e, agora, reféns das suas direções. É o segundo grupo que mais desilude.

Digo, sem rodeios, que o futebol morreu. Será apenas uma manobra? Não sei e não sei o que vai acontecer. Se vai concretizar-se ou se vai tudo por água abaixo. Mas será que o futebol vai voltar a ser o que era? Não. Este foi o culminar de um longo processo que vem desferindo duros golpes no futebol que amamos. E eu já não assistia ao futebol português, porque já não se joga dentro das quatro linhas há muito tempo. Via esmorecer a paixão pelo futebol a nível mundial com a introdução do VAR, que mata todas as emoções. Enfrentamos a covid-19, que veio arrancar os adeptos dos estádios, e o que é futebol sem adeptos? Nada. Este futebol não passa de um jogo de grandes que acaba com os sonhos dos pequenos. Um desporto criado pelos pobres e roubado pelos ricos. Estava cansado deste futebol. Agora sei que, mesmo que o circo continue, o futebol morreu para mim.

A coroa caiu. Este desporto de rei já não tem nada.

Descansa em paz, futebol.

Imagem de StockSnap por Pixabay

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