O grito

No passado fim-de-semana, cerca de 3 mil pessoas manifestaram-se em Lisboa, sem máscara nem distanciamento social, contra as medidas de contenção da covid-19. Uma réplica do que tem acontecido em várias cidades, um pouco por todo o mundo. O que explica isto?

Opinião de Kevin Santos

O mundo divide-se. Uma parte vive confinada, reinventa-se socialmente, trabalha em casa quando pode, refugia-se atrás de uma máscara e gasta a pele das mãos com desinfetante. Outra, porém, nega a gravidade do que se passa há mais de um ano. Uma parte cumpre todas as regras, regras que nos protegem. Outra, enfim, ignora a mudança do mundo. Mas o que justifica isto? O que pode levar a tantas pessoas a negarem a gravidade de uma pandemia que já levou mais de 16 mil vidas em Portugal?

Será irresponsabilidade? Bem, acredito que irresponsabilidade se traduza em falta de prudência e sensatez. Embora a sensatez esteja a vários quilómetros destas pessoas, não acredito que seja a falta de prudência que causa tudo isto, uma vez que falamos de atos conscientes. Não foram manifestar-se desta forma ‘sem querer’, não é?

Será ignorância? Numa altura em que assistimos à maior democratização do acesso ao saber, através de recursos impensáveis há algumas décadas, percebemos que as pessoas se ilibam da responsabilidade de aprender, de ler, de se informar. Nunca tivemos tanta facilidade em aceder a livros e a outro tipo de conteúdos, mas nunca vivemos uma época em que se lesse tão pouco. As notícias são títulos. Os livros são capas. As crónicas? O que é isso? E vou mais longe, os vídeos ou podcasts não podem ser demasiado longos, ninguém vai ver ou ouvir. Ou é rápido ou não é, simplesmente.

Será falta de formação? Porque não? Acredito que pode ser na educação que reside o maior problema da nossa sociedade. Sim, nossa. Não me refiro apenas às creches, escolas, universidades e outras instituições. Refiro-me a toda a educação. Porque toda a educação começa (ou devia começar) em casa. O nosso mundo necessita, desesperadamente, de um ‘reforço educativo’. A palavra-chave é LITERACIA. Literacia mediática, literacia política, literacia económica, literacia emocional e mental… Deve existir uma aposta mais forte na formação dos mais jovens. Não em português, matemática ou inglês, mas em saber o que é verdadeiro e o que é falso, saber distinguir esquerda e direita (na política e não só…), saber tratar das finanças sem ligar a um contabilista, saber lidar com todas as pressões do mundo lá fora, saber aceitar um não, saber, saber, saber…

Será falta de valores? Até parece que estes parágrafos se entrelaçam, não é? Se algum pai está a ler isto, peço, por favor, que pare e pense: o que é que já ensinei ao meu filho? Não, não estou a falar do ‘a e i o u’. De geração para geração, os valores vão-se perdendo. Não temos tempo para ensinar, não temos paciência para as crianças. Outrora herdávamos valores dos mais velhos, hoje não temos tempo para os ouvir…

Será que também somos responsáveis? Sim, somos. Todos somos responsáveis pelo que se vai passando na nossa sociedade. Sim, nossa. Somos todos responsáveis, mesmo quando utilizamos máscara e cumprimos com todas as recomendações. Porquê? O que fizeste para inverter tudo isto? Até quando vais permitir que isto aconteça?

Será culpa dos media? Até quando vamos permitir que os media, governados como um negócio onde os interesses financeiros estão no topo das prioridades, nos mergulhem no sensacionalismo, fake news e teorias da conspiração? As pessoas estão, realmente, perdidas num oceano de (des)informação. E não chega entregar-lhe um barco, precisamos de lhes dar instrumentos para navegar de forma segura, inteligente e verdadeira.

As pessoas estão fartas, cansadas, falidas, perdidas. Tudo isto aliado aos problemas que fui enunciando ao longo do texto. As 3 mil pessoas são agora alvo da ira e chacota dos outros portugueses. Dói ver tantas pessoas a deitar tudo a perder.

O objetivo desta manifestação era dar um grito contra a gestão da pandemia. Porém, o grito que eu ouvi foi: a nossa sociedade precisa de nós!

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

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