“Uma cidade com arte urbana tem a nu o registo da nossa época”

Após ser associada à cultura negra e ao vandalismo, atualmente a arte urbana tem ganho apoiantes por todo o país. Muitas são as cidades que abrem espaço a este estilo de expressão. As ruas de Viseu não são excepção, carregam em si histórias e sentimentos dos artistas de arte urbana.

Reportagem de Sofia Pereira

Entre latas de tinta, papeis, pedaços de madeiras e materiais do quotidiano, nasce a arte urbana, também conhecida como “street art”. Aproveitando paredes, muros e até casas vazias de personalidade, os artistas trazem carisma às ruas pelas quais passam. Através de cores e traços, aparecem os sentimentos e pensamentos destas pessoas. A forma como trabalham, os significados que atribuem às obras, os objetos que utilizam e a maneira como se expressam, são únicas. Tal como a forma como os apreciadores da obra, a interpretam e sentem.

Viajando até às terras de Viriato, em Viseu, muitos são os locais onde é possível apreciar a famosa arte urbana. As cores, a variedade, os conceitos e o factor surpresa de encontrar uma obra de arte nas ruas, embeleza a cidade. O investimento nesta arte é notório, e a criação do Festival Street Art Viseu, pela Câmara Municipal de Viseu, impulsionou a criação de várias obras de arte.

Obra de Bordalo II em Viseu

A possibilidade de oferecer espaços, paredes, muros, edifícios e outros locais a artistas de arte urbana, torna mais visível a expressão artística e dá oportunidade à experimentação daqueles que nunca tiveram oportunidade para tal. De entre vários nomes, JAF, Rosário Pinheiro, Youthone e Rosália Marques, contam um pouco mais sobre o que os trouxe até esta arte – a arte urbana.

O começo

Antes de serem realizados programas e eventos de arte urbana, muitos eram aqueles que a faziam sem autorização. JAF, artista de arte urbana do distrito de Viseu, adorava visitar locais com street art que apareciam misteriosamente na cidade.

Era apreciador do graffiti e “desde muito novo que ficava deslumbrado sempre que encontrava graffiti espalhados pelas ruas.” Quando começou a pegar em latas de tinta spray, poucas eram as intervenções artísticas na sua zona e acredita que isso ainda lhe deu “mais curiosidade e vontade de pesquisar sobre a área.”

Rosário Pinheiro é artista de arte urbana da cidade de Viseu e foi participante no Festival Street Art Viseu. Não cresceu num ambiente em que a arte urbana fosse predominante, mas, com o acesso à internet, encontrou o seu fascínio pela arte – interessando- se e envolvendo-se cada vez mais. Em meados de 2010, a artista fez “um trabalho de campo em Londres e Berlim, e foi o primeiro contacto mais direto com estes artistas. Na altura ainda não era comum, em Portugal, a pintura mural de forma legal.”

Obra de Rosário Pinheiro em Viseu

As inspirações nem sempre aparecem do nada, muitas vezes têm fontes literárias, sonoras, visuais, entre muitas outras que preenchem os nossos dias e a nossa imaginação. Rosário Pinheiro não é diferente. Conta que para qualquer obra que faça, seja arte urbana ou outra coisa, a sua “base é quase sempre a literatura, mais especificamente a poesia portuguesa.”

A arte urbana é acessível a todos, está à vista de qualquer um. Seja num passeio em família ou numa simples viagem de autocarro. Quando observamos as paredes e os espaços ao redor, deparamo-nos muitas vezes com obras de arte que alguém decidiu deixar para trás. Para JAF, esta é a sua inspiração. O artista conta que cada obra que faz é diferente e tenta “em cada caso projetar algo único e novo.” Conta que “uma cidade com arte urbana tem a nu o registo da nossa época.”

Adalberto Brito, mais conhecido por Youthoner – seu nome artístico, teve um crescimento diferente. Em 1975, devido à Guerra Civil em Angola, foi obrigado “a fugir do país e recomeçar do zero em Portugal.” Aos seus 10 anos, Youthoner começou a interessar-se pela criação artística. Apreciava os desenhos do irmão mais velho, que juntamente com a música, o inspiravam para produzir street art.

Obra de Youthoner em Viseu

Na sua infância, em conjunto com os amigos conta que faziam “batalhas de rimas, uns contra os outros”. Começou a explorar o graffiti e nessa altura já faziam os seus “nomes nas paredes e muros do bairro a copiar os filmes”, criando assim os seus TAG’S (pseudo-nomes de identificação artística).”

Do planeamento e da idealização à construção da obra, muitas são as fases pelas quais os artistas passam. Rosália Gomes Marques, tem 22 anos e é estudante de arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. É natural de Viseu e atualmente vê a sua vida a passar-se maioritariamente pelas ruas da cidade Invicta. Já desde pequena sente vontade de “criar, pintar e desenhar”. No seu percurso escolar teve “contacto com diferentes expressões artísticas, e sempre que tinha oportunidade participava em concursos ou atividades relacionadas com arte.”

Foi em 2016 que Rosália Marques se aventurou na pincelada da arte urbana. Ao ver que a Câmara Municipal de Viseu estava a promover um concurso de street art decidiu arriscar. Nas suas obras inspira-se na natureza que diz ser uma “fonte de inspiração ilimitada” e nas atividades quotidianas, muitas vezes consideradas “mundanas” .

A Arte dá vida

Muitos são já os artistas que conseguem viver através da sua arte. É o sonho para muitos, trabalhar no que se gosta. No entanto, a arte nem sempre dá vida àqueles que gostariam de viver dela. Rosário Pinheiro não rejeita a possibilidade, nem esconde o desejo, de viver apenas da sua arte, mas assume que, “como qualquer área artística, é difícil viver apenas de um tipo de trabalho. Geralmente os artistas tendem a ser multifacetados e respondem a vários tipos de desafios.”

Há quem demore uma vida a ser reconhecido. Há artistas que produzem, inovam, experimentam, mas mesmo assim não chega e dá-se a impossibilidade de se limitar à produção de arte apenas. Youthone é um exemplo de esperança para quem sonha viver da arte urbana. Na sua vida já passou por vários postos de trabalho. De entre militar dos quadros permanentes, comercial de empresas e outras profissões, “foram precisos 31 anos para parar no mesmo, Graffiti.”

JAF, artista de Mangualde, concorda também que “é possível viver da arte urbana”. Até chegar a este patamar, a aprendizagem e o crescimento foram constantes. À medida que foi crescendo, foi “aprendendo sobre outras matérias e investindo nesta área”. Melhorou as suas capacidades e começou a olhar para a arte de forma mais madura. Este crescimento pessoal, encorajou-o a “desenvolver trabalhos mais exigentes em termos técnicos e com mais conteúdo implícito.”

JAF diz que é possível viver da arte urbana

A arte não era tão valorizada como outras áreas de trabalho, no entanto, atualmente existe uma maior sensibilização para este género de expressões. Para isso, segundo JAF, “é necessário trabalhar bastante no sentido de garantir que aquilo que fazemos permite a nossa subsistência.”

A JAF surgiu a oportunidade de participar no “Projeto Artista Residente” criado pelo Agrupamento de Escolas de Nelas. Através deste projeto, conseguiu transmitir o seu “testemunho enquanto artista e realizar em parceria com eles dois murais.” Destaca em especial este projeto por “permitir levar até aos alunos do 5o ao 9o ano uma forma de arte que durante muito tempo foi marginalizada.”

Festival de street art

Em Viseu, a Câmara Municipal investiu também neste meio e criou o Festival Street Art. De entre todos os convidados e até interessados, Rosário Pinheiro é um exemplo da determinação. Com vista a ter um mural feito por si, foi a própria que se propôs a participar no festival. Conta que “nesse ano o tema era a Gastronomia”, uma das suas áreas de interesse. Por isso mesmo, a artista “quis fazer uma proposta.”

Com a mesma vontade de Rosário Pinheiro, Youthone participou também neste festival. Apesar de ter sido convidado pela organização, explica que o seu interesse pessoal passa por mostrar a qualidade do seu trabalho artístico à cidade que recentemente o acolheu. A par disso, o artista quer também “contribuir para o sucesso, pelo menos na Arte urbana.”

Este estilo de expressão, nos anos 80 e 90, era associado à cultura negra como sendo “coisa de pretos e vândalos”, segundo Rosário Pinheiro. Quando os artistas de arte urbana deixaram de ser uma minoria, esta “tornou-se numa arte plenamente aceite.”

Chegou para ficar, pelo menos por agora

São vários os artistas que sentem a crescente adesão à arte urbana por parte de cada vez mais artistas ou até pioneiros. A oportunidade que os municípios estão a dar a esta arte, segundo Rosário Pinheiro, “são uma forma de embelezamento das cidades e marketing territorial”. Intervir no espaço público espontaneamente continua a ser ilegal e muitas vezes visto como um acto de vandalismo. A artista acredita que a aposta na arte é positiva, uma vez que “dá espaço aos artistas para terem tempo de criar e também oportunidade de viverem do seu trabalho, sem serem presos.”

Youthoner sente que “a arte urbana mudou mentalidades de uma forma positiva”. No nosso meio “vingou a teimosia e a perseverança em prol de um bem comum. Dar acesso à arte a quem não visita museus, acessível a todos, ricos e pobres”.

A arte de rua está disponível a todos os que por ela passam, e é Rosália Marques quem explica que, “a arte é criada para as pessoas e já não faz sentido elitizarmos a arte, pelo que a meu ver a arte urbana reflete bem essa transformação.”

Para que continue a existir e a nascer arte urbana nas ruas do nosso país, Jaf concorda que “são necessários mais apoios, especialmente para os novos artistas e para os artistas locais. Só assim haverá mais artistas motivados a criar, e dessa forma contribuir com mais cultura e mais valor para enriquecer as nossas cidades.”

As ruas da cidade de Viriato, continuam a ser presenteadas com obras de arte, que transmitem sentimentos e registam a época em que nos encontramos. Algumas aparecem misteriosamente na cidade e outras nascem de projetos, eventos e atividades criadas pelos municípios. O apoio aos artistas e à arte urbana tem alterado a nossa cultura, uma vez que as obras de rua, estão acessíveis a todos os que por elas passam.

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