Exploração e poluição: o preço que pagamos pela falsa democratização da moda

A insustentabilidade do fast fashion, o trabalho análogo à escravidão e a pressão do capitalismo mostram que ainda há um longo caminho a percorrer para um consumo consciente

Por Júlia Vilaça

O modelo de negócio utilizado pela indústria da moda já passou do prazo de validade e as empresas precisam de se adequar às novas demandas da sociedade. Nesse contexto, surgem os debates a favor da democratização da moda e de um consumo mais sustentável. Em ideais, essas duas demandas parecem convergir, mas, na prática, a situação não é tão simples. O mercado tentou tirar proveito desses movimentos para lucrar e as consequências podem se agravar se esse tipo de atitude não for travado, mas, para entender por que e como chegamos até essa realidade, é preciso entender como surgiu o movimento.

Nas décadas de 1950 e 60 a moda sofreu uma ruptura da qual colhemos os frutos das consequências até hoje. Essa nova fase, mais moderna, a indústria fashion generalizou aquilo que a moda de cem anos tinha instituído como novidade: uma lógica industrial em série, com coleções sazonais, que ofereciam uma grande variedade de peças, e desfiles de manequins com o objetivo de promover as novas criações. Por um lado, essa industrialização permitiu diminuir o custo de peças e democratizá-las, de forma que, com o passar do tempo, todas as classes económicas tinham acesso a novos lançamentos, mesmo que com etiquetas, formas de produção, materiais e preços diferentes. Segundo Lais Fontenelle, em sua dissertação de mestrado para a PUC Rio de Janeiro (2003), essas mudanças possibilitaram o surgimento e desenvolvimento do prêt-à-porter, expressão que quer dizer “pronto para vestir” e foi um divisor de águas na história da moda: deu a Alta Costura um tom ainda mais luxuoso, além de perpetuar a ideia de uma produção industrial de roupas acessíveis a todos.

Para que as peças pudessem ser baratas, as grandes marcas optaram por fazer roupas com uma qualidade baixa que, além de diminuir o custo, fariam com que o consumidor estivesse sempre comprando, já que os produtos não ofereceriam uma vida útil longa. Essa prática foi ganhando cada vez mais adeptos, as marcas foram crescendo e vendo que esse modelo de negócios era altamente lucrativo. Assim surgiu o fast-fashion, prática de produção e venda que, por valorizar o preço baixo, a grande variedade de peças sem etiqueta e a compra constante, desencadeou problemas como exploração de trabalhadores em situações análogas à escravidão e aumento da poluição, afinal o descarte de peças intensificou. Atrelado a isso, ainda tem o sentimento capitalista e as propagandas que persuadem as pessoas a adquirirem cada vez mais peças, alimentando um ciclo vicioso que precisa ser desacelerado.

Cada português gastou 788 euros em roupa e calçado

Segundo pesquisa realizada pela Eurostat, Portugal foi o país da União Europeia que mais gastou em roupas e calçados no ano de 2018. Os dados indicam que os portugueses gastaram 4,1% do PIB nesses bens – o que corresponde a cerca de 788 euros por pessoa, de acordo com o valor mais recente da Pordata.

Ainda com base em pesquisa, mas desta vez feita pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 2017, foram recolhidas aproximadamente 200 756 toneladas de têxteis nos resíduos urbanos, um valor que representa cerca de 4% do total de lixo produzido pelo país (cerca de 4,75 milhões) e que é um valor superior ao registrado no ano anterior (196 865).

Entretanto, esse problema não está somente em Portugal. Em 2016, o The Guardian publicou uma reportagem contando que foram enviadas 350 mil toneladas de roupa para aterros no Reino Unido. Enquanto isso, nos EUA, 15 milhões de toneladas de resíduos têxteis são gerados anualmente e desses apenas 2,62 milhões são reciclados.

Além da contribuição para o aumento do desgaste ambientar, para sustentar o modelo de negócios exigido pelo fast-fashion, as marcas contratam funcionários que trabalham em situações análogas a escravidão: condições de trabalho precárias, salários irrisórios e jornadas exaustivas.

André Carvalhal, em seu livro “Moda com Propósito”, conta: “diversas vezes fiquei constrangido ao visitar fabricas ou escritórios de marcas que nada representavam a imagem externa que tentavam construir. Lugares tristes, sem vida, onde a criatividade não era estimulada – assim como a consciência social, a saúde mental, a higiene…”. Situações como essa estão presentes em vários lugares ao redor do mundo e a falta de zelo do empregador para com o empregado vem trazendo cada vez mais revolta, pois as consequências dessa prática são graves.

O desabamento do Rana Plaza e o surgimento do Fashion Revolution

No dia 24 de abril de 2013, o edifício Rana Plaza, no Bangadlesh desabou, causando a morte de 1.134 trabalhadores da indústria da confecção e deixando mais de 2.500 feridos. As vítimas trabalhavam para marcas globais, como Zara e Primark, em condições análogas à escravidão.

Nesse contexto nasceu o Fashion Revolution, movimento criado após um conselho global de profissionais da área se sensibilizar com desabamento do edifício. Com um discurso em defesa de uma indústria da moda mais limpa, segura, justa, transparente e responsável, o movimento acredita na transformação desse mercado.

Para dar início à revolução, o grupo começou a divulgar a hashtag #QuemFezMinhasRoupas. O objetivo é conscientizar as marcas e os consumidores sobre o verdadeiro custo da moda e seu impacto no mundo, em todas as fases do processo de produção em consumo. Assim, exigir mais transparência das marcas e, ao mesmo tempo, conscientizar os consumidores da importância de cobrar que as marcas deem as informações completas sobre o processo de produção dos seus produtos.

O Fashion Revolution está presente em mais de 100 países e, todo ano, na semana da data do acontecimento de Bangladesh, é promovida uma semana de debates sobre os mais diversos temas da moda, sempre com o objetivo de informar e conscientizar. Segundo Lívia Monteiro, representante do movimento em uma das capitais do Brasil, esses eventos são sempre muito ricos e cheios de troca e aprendizado. “Nós ficamos esses dias submersos na realidade dos trabalhadores, das indústrias e dos consumidores, aprendendo sobre as condições de produção, debatendo sobre o futuro e propondo ações para gerar a transformação que precisamos”, afirma.

Portugal está entre os países que fazem parte e possuem um núcleo do Fashion Revolution. Para mais informações, basta acessar o site oficial do movimento e o canal do YouTube para acompanhar as ações do grupo.

O trabalho do Fashion Revolution já gerou resultados positivos. Grandes marcas como C&A, Zara, Brooksfield e JohnJohn começaram a repensar suas formas de produção e aplicar mudanças para um processo mais limpo e respeitoso ambiental e socialmente. Mesmo assim, ainda há muito o que ser feito.

O que fazer para ajudar nessa transformação

No Madrid Fashion Week de 2020, em que Chenta Tsai, cantor e designer gráfico do Taiwan, desfila com a frase “I’m not a vírus” (“Eu não sou um vírus”) escrita no peito. A atitude do modelo, que é colunista do jornal espanhol El País, afirmou em texto que seu objetivo era de “apoiar a comunidade asiática, que está sofrendo perseguições raciais em função do coronavírus”.

Grandes atitudes como essa são importantes para impulsionar os movimentos que vieram junto com a politização da moda, pois ajudam a espalhar a informação, mas as atitudes não podem se resumir a isso. É preciso que os consumidores mudem suas ações, no dia-a-dia. No final, a soma de pequenos gestos, resulta em uma grande mudança.

Segundo Valéria Said, jornalista, pesquisadora de moda e representante do Fashion Revolution, é importante começar aos poucos e sugere que “um bom start é optar pela redução do consumo. Comprar cada vez menos ajuda o bolso e o planeta”. Segundo ela, a melhor forma de renovar o guarda-roupa é usando a criatividade para transformar peças que já tem.

Além da inovação de peças já adquiridas, uma boa opção é na hora de comprar optar por marcas que têm um processo de produção transparente, consciente, ou seja, lojas que prezam pelo slow-fashion. Em Portugal, é possível encontrar marcas sustentáveis, principalmente em Lisboa. Lojas como Couve, António, Cuscuz e ISTO são exemplos de locais confiáveis caso opte por adquirir uma nova peça.

Se por uma nova peça para uso não é o que quer, uma alternativa são optar por roupa em segunda mão e lojas que promovem a economia circular. O Porto é muito famoso por ter thrift shops descolados e com peças em ótimo estado, como o Mon Pére Vintage, Ornitorrinco Vintage e Humana.

E, por fim, colocar como regra que, todas as vezes, antes de comprar alguma coisa, deve-se questionar se aquilo é realmente necessário e se precisa da peça naquele momento. Lifestyles minimalistas, com a prática de armários capsula e mínimo de desperdício, têm ganhado cada vez mais adeptos em todo o mundo.

Não é preciso ser tão radical e parar de vez de comprar. O segredo é se informar e desenvolver cada vez mais consciência, para mudar as atitudes aos poucos. Consumir consciente vai muito além de comprar ou não algo. Exige um olhar crítico e exigente, que vai exigir transparência das marcas que consome e optar sempre por aquilo que impacta menos o planeta e a vida das pessoas.

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